segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O mofo libertador das nossas bibliotecas

Como a linguística e a literatura desmistificam alguns minúsculos pensamentos de Itararé

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA


Ferdinand de Saussure é considerado o pai da Linguística e, portanto, uma leitura imprescindível a quem deseja entender um pouco do que é a linguagem. Bem, resumidamente, ele tratava a língua como um organismo que está em constante mudança. Estas alterações acontecem de maneira arbitrária – não tem como prever como será a língua em 100 anos, assim como os romanos não sabiam o que seria do latim. A língua, portanto, muda de acordo com a evolução da sociedade como um todo. Conclui-se, então, que um indivíduo sozinho, por vontade própria, não muda nada na língua.

Em um país, temos, na maneira coloquial (ou popular) de se expressar, os chamados sotaques e gírias. Mas, é necessário também conhecer a língua na sua forma culta, “fixa”, nem que seja apenas para usá-la em ocasiões cerimoniosas. A norma culta é uma maneira de a língua “se manter” frente às suas variações, uma forma comum de utilização – e daí a importância de ter domínio sobre ela. Assim, não existem “donos” da língua, mas apenas aqueles que sabem e que não sabem usá-la de maneira adequada nas mais diversas situações. Itararé é, provavelmente, um dos poucos municípios onde alguns meios de comunicação condenam os que incentivam o uso correto do português – o que, a priori, deveria ser algo básico para quem se propõe a publicar textos regularmente para a população em geral. 

Tal fato não é pedantismo, mas a norma. E é no mínimo contraditório que pessoas que pregam o cumprimento de leis insistam em não obedecer às regras da própria língua e, pior, alegar que cumprir tais regras seria algo injusto, zombeteiro para com a população. No fundo, não passa de um grande jogo onde se cumpre somente aquilo que traz benefícios – nossa gramática é apenas mais um exemplo disso. 

E, acreditem, vim aqui falar de literatura. Mas, onde é que os escritores, os poetas, entram no meio deste assunto? Já dizia Ezra Pound que os artistas são “as antenas da raça”. De fato, os artistas têm a capacidade de detectar problemas sociais e expô-los com sensibilidade, despertando nossa capacidade de reflexão através de outras perspectivas. Alguns pintam telas, outros compõem músicas. Os escritores transmitem aquilo que captam por meio das palavras. Eles não só trabalham com a linguagem, eles trabalham a linguagem: andam junto com a língua, brincam com ela, a tornam mais flexível e ampla. 

Alguns destes artistas se apropriam das palavras de maneira magistral. Como não se emocionar, por exemplo, com os belos versos de Drummond: 

“Deus me deu um amor nos tempos de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus, ou foi talvez o diabo, deu-me este amor maduro
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.”

Mas, extrapolam-se as belas construções. Os prosadores, os poetas, além de embelezar e inovar, também podem colaborar na formação e desenvolvimento de uma língua. Quem diz “so-so” ou “in a pickle” em inglês, deve isto a Shakespeare. Além disso, o que seria do italiano sem o toscano de Dante, o português sem as construções de Camões – o marco entre o arcaico e o moderno? E são apenas alguns exemplos. O que todos eles escreveram há séculos foi essencial para que suas línguas se tornassem o que são hoje, principalmente porque eles queriam, segundo Erich Auerbach, “enriquecer, ornar e afeiçoar [a respectiva língua], para que fosse tão bela e tão adequada à manifestação de altos pensamentos e de sentimentos elevados quanto o haviam sido as línguas antigas”. Assim, as línguas foram e continuam sendo desenvolvidas pelo constante trabalho dos escritores. 

Partindo disto, é de se estranhar a afirmação recentemente estampada num dos meios de comunicação da nossa cidade: “os grandes escritores tem por trás de seus livros, grandes revisores. É a regra literária!” (sic). Deixando para trás o crasso erro de português da citação, gostaria que o seu autor explicasse a frase. Questiono-a fortemente. Se os grandes escritores tivessem, necessariamente, grandes revisores por trás de si, seriam impossíveis as inovações, a literatura tornar-se-ia rígida. Partindo daí, já poderíamos deixar de lado os brilhantes neologismos de Guimarães Rosa. Afinal, como revisar uma invenção? E, digo mais, acredito que o caminho tenda justamente para o lado oposto. É só fazer o teste: qualquer gramática da nossa língua usa textos literários para exemplificação; por sua vez, os autores literários não se pautam necessariamente e exclusivamente em gramáticas nos seus trabalhos. 

Dizer que tal mentira é a “regra literária” torna tudo ainda pior para seu autor. A literatura pertence ao campo das humanidades. Querer atribuir uma regra imutável e constante para isso é transformar esse maravilhoso campo de estudo em algo exato. Tal atitude beira as raias do ditatorial. Mas, assassinar matérias básicas já se tornou algo comum no nosso município. Fazem questão de mutilar a história e o português e, agora, também querem levar a literatura para o túmulo. Pobres de nós. 

Mas, os autores desses meios rasos de comunicação conseguem se superar: acusam pessoas que estudam e que dedicam seu tempo ao saber de cair “no ninho com o mofo das suas bibliotecas”. Hoje vim, aqui, em defesa da literatura. Mais: vim em defesa daqueles que passam seu tempo lendo, estudando e pesquisando; que encontram no saber o seu conforto diante das injustiças do mundo. E não me refiro só aos escritores deste blog. Refiro-me a Dante, exilado e descrente; a Edmond Dantès, que encontra a liberdade na prisão injusta; a Thomas Mann, ao redigir seu Doutor Fausto. 

No meio do caminho das nossas vidas, nos encontramos em uma selva escura de sofismas e falácia - onde o que resta é dar voz ao conhecimento esclarecido dos silenciosos livros. E é por isso que digo que prefiro cair honradamente com o “mofo da minha biblioteca” a me afundar numa ignorância cilíndrica.

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