segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Kafka, in dubio pro hell e a Excelentíssima Mídia

por LETÍCIA SANTOS


Em 1925, foi publicado o romance O Processo, do escritor checo Franz Kafka. Neste livro, Kafka conta a história de Joseph K., um bancário que é processado sem saber o motivo. K. tem sua vida particular e profissional afetada por conta disto. Para tentar obter informações acerca de seu processo, K. encontra dificuldades, pois os tribunais estão localizados sempre acima do povo, separados por escadarias, o que dá a ideia de separação e superioridade do direito, como quem não deve explicações ao povo.

No desenrolar da história, notamos que K. é sempre observado, julgado e criticado por pessoas que, assim como ele, não sabem o motivo da acusação. Ele também é vitima de especulações. Em um trecho do livro, quando K. conversa com o pintor, nota que está sendo observado por algumas meninas, e quanto a isso o pintor lhe responde “essas meninas também fazem parte do tribunal”, e ainda completa: “tudo pertence ao tribunal”. Franz Kafka, que estudou Direito, faz uma crítica direta ao sistema judiciário e explora a relação do indivíduo indefeso diante do poder, um indivíduo que é acusado e condenado antecipadamente pela sociedade, o que contradiz o princípio de presunção de inocência, a máxima latina in dúbio pro reo.

O artigo 5°, inc. LVII da Constituição Federal diz: 

- ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

O in dúbio pro reo também está elencado na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, que no seu art. 9º diz:

“Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”. 

E também na Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, onde se lê: “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.

Tudo para dizer que a presunção de inocência constitui um direito fundamental de dimensão constitucional. A carga probatória é toda da acusação. Esse princípio visa garantir os direitos do réu, condicionando o tratamento que receberá pelas autoridades judiciais durante todo o processo até a eventual condenação; como ensina o juiz desembargador Amilton Bueno de Carvalho: o juiz deve entrar no feito convencido de que o cidadão é inocente e só prova forte em contrário, destruidora da convicção inicial, é que levará ao resultado condenação.

Mas o que notamos prevalecer todos os dias é o princípio in dúbio pro hell, muito usado pelo jornalismo sensacionalista, (falamos aqui principalmente do jornalismo policial) que, ao noticiar, já acusa, julga e condena.

A maioria das pessoas que se informam através dos grandes veículos de comunicação assiste aos telejornais e diariamente é bombardeada por notícias de crimes, violência, o que as insere na cultura do pânico, trazendo a sensação de terror para dentro de suas casas. 

Os suspeitos de crimes, de pequenos furtos a homicídios, são expostos, os apresentadores de televisão já traçam seu perfil social e, após diversos comentários sobre o que teria levado o suspeito a realizar o crime e como teria ocorrido, o condenam e, em alguns casos, até mesmo realizam a dosimetria da pena. Sendo assim, não há necessidade de juristas, criminalistas e sociólogos: a mídia cuida de tudo, simplificando um problema gigantesco que é a violência, para conseguir encontrar uma resposta, diz que o problema do Brasil é a falta de punição. Temos que punir mais, encher ainda mais os presídios. 

Ignorando que segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apresentados no ano de 2014, a nova população carcerária brasileira é de 711.463 presos, sendo que há 230 mil pessoas presas no Brasil que nunca tiveram a chance de se defender, os chamados presos e presas provisórios.

O que é mostrado por grande parte da mídia é uma distorção do que é Direito e Processo Penal, fazendo acusações e julgamentos sobre crimes baseados em “achismos”, com discursos de estereotipização, apenas falam do crime e do suspeito no início, quando se tornou público, não acompanham todo o processo, a produção de provas. São tantos casos mostrados diariamente... será que absolutamente todos são culpados? E os que foram acusados injustamente, a mídia lhes dará o mesmo espaço para se retratar e contar a verdadeira história? Não, isso dificilmente acontece.

Com esse princípio distorcido que convivemos, o in dúbio pro hell, na dúvida a verdade deve ser perseguida até que se chegue ao resultado desejado, que não é outro que a condenação.

Casos como o de Joseph K. ainda acontecem. Kafka continua atual, assim como o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano, que em sua crônica sobre o judiciário na ditadura, também falava sobre o in dúbio pro hell:

Acima, no alto do estrado, envergando sua toga negra, o presidente do tribunal.
À direita, o advogado.
À esquerda, o promotor.
Degraus abaixo, o banco dos réus, ainda vazio,
Um novo julgamento vai começar.
Dirigindo-se ao meirinho, o juiz, Algonso Hernández Pardo, ordena:
- Faça o condenado entrar.

* Acadêmica do 5º semestre de Bacharelado em Direito nas Faculdades Integradas de Itararé. Atua como estagiária em escritório de advocacia.

5 comentários:

  1. Amei! Estou ansiosa para o próximo assunto. Essa menina vai longe.

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  2. Lucinda de Almeida Santos19 de janeiro de 2015 às 17:07

    Amei! Essa menina vai longe. Estou ansiosa pelo próximo assunto.

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  3. O maior caso midiático de "achismo" foi o da Escola Base em 1994, SP. O processo ainda está em andamento.

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  4. Ótima abordagem, e se restar alguma dúvida, assista ao vídeo https://www.youtube.com/watch?v=8IOPezxnGqw. Parabéns, Letícia!

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  5. É de suma importância a discussão desses fatos pela sociedade para incentivar a reflexão de nossas ações.
    Creio ser oportuno ressaltar que o pré-julgamento popular por meio do clamor público são recorrentes ao longo da história, porém, talvez pela facilidade do acesso a informação ou pelo imediatismo que caracteriza a sociedade contemporânea, tais acontecimentos parecem estar se agravando.
    Lembremo-nos que no ano passado uma jovem foi massacrada em Guarujá devido a boatos da internet, o que me leva a pensar que a culpa deva recair não apenas na mídia, mas principalmente nos receptores que reclamam para si além do papel de juiz, em alguns casos também o de algoz.
    Ótimo trocadilho, "in dubio pro hell", parabéns Leh, forte abraço!

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