Os comentários de Rachel Sheherazade sobre o adolescente amarrado ao poste por "justiceiros" não comandaram as execuções destes meninos caídos sobre as escadarias de mais uma favela carioca. Nem precisava. Sua fala tem apenas uma função: autorizá-las
Reproduzo um trecho do artigo "Olho Por Olho", publicado há pouco menos de 2 anos aqui mesmo no Desafinado, e que talvez tenha algo a acrescentar sobre a mais nova peça produzida pela jornalista Rachel Sheherazade.
A praça de Greve estava lotada em Paris. Era 2 de março de 1757, e o protagonista do espetáculo chegava vagarosamente desde a porta da Igreja, vestido apenas com uma fina camisola. Diante dos olhos da multidão, sofria duras chagas como castigo pelo crime de parricídio. Considerado o pai de todos, o rei da França Luis XV fora atacado por Robert-François Damiens, que segurava agora a mesma faca com que tentara matar o mandatário máximo do absolutismo francês em pleno vigor a pouco menos de três décadas do seu colapso. Puni-lo era questão de honra para o rei e - mais - exemplo para os demais súditos.
Além da humilhação submetida graças à exposição e os constantes xingamentos proferidos contra si, Damiens também recebeu um sem-número de açoites que pouco a pouco rasgaram cada parte do seu corpo. Braços, pernas e mamilos decepados recebiam doses cavalares de óleo fervente, chumbo derretido e piche, que eram derramados sobre cada uma das feridas.
Além da humilhação submetida graças à exposição e os constantes xingamentos proferidos contra si, Damiens também recebeu um sem-número de açoites que pouco a pouco rasgaram cada parte do seu corpo. Braços, pernas e mamilos decepados recebiam doses cavalares de óleo fervente, chumbo derretido e piche, que eram derramados sobre cada uma das feridas.
Já no patíbulo erguido, diante da multidão, Damiens partiu para uma das cenas finais do seu auto-de-fé: o esquartejamento. 4 cavalos foram colocados à disposição, amarrados a cada um dos membros do seu já debilitado corpo. A partida foi dada e, muito embora fossem fortes, os cavalos não foram capazes de arrancar-lhe as juntas. Depois de algumas tentativas, em meio aos gritos de horror proferidos pelo criminoso, houve nova tentativa, agora com 6 cavalos, também sem sucesso.
Para concluir o destino da condenação, os carrascos decidiram eliminar o problema: cortaram todos os nervos das pernas que impediam a secção da carne. Assim, finalmente, os cavalos partiram mais uma vez e Damiens teve os dois braços e as duas pernas brutalmente arrancados do corpo ainda relutantemente vivo. Lançados ao fogo, os pedaços de carne e o tronco queimaram por cerca de 4 horas.
Algum tempo passou desde a condenação de Damiens, e a grande verdade é que, pelo menos legalmente, a punição da delinquência tem se tornado cada vez menos vingança e mais justiça. Ainda que as prisões não tenham produzido aquilo que Foucault chamou de "corpos dóceis", é fato que a racionalização das penas deveria ter reduzido a violência não apenas marginal, mas também do Estado. Deveria, pois no frigir dos ovos a violência do Estado tem sido constantemente justificada pela marginal, e a consequência disso é o caos urbano.
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É verdade que quase tudo já tenha sido dito pela jornalista Rachel Sheherazade, hoje no SBT. Mas é também verdade que pouco tem se reforçado o quanto que, mais do que lançadora de tendências, ela se tornou a personificação do pensamento reacionário que está presente ali no consultório odontológico, na farmácia, na escola de educação infantil ou nas feiras ao ar livre.
Sheherazade é o recalque denunciado por Freud mandado às favas pelas redes sociais sob a máscara do anonimato. Não é necessária muita pesquisa para que algum de seus cavaleiros se manifestem com o discurso de que ela tem personalidade. Não tem. Parafraseando Ricardo Sica sobre Lobão, Sheherazade é um comentário do G1 que fala. Assumiu isso pra si desde o primeiro minuto que apareceu na TV e não escondeu nunca mais.
Agora, a jornalista do SBT está na boca das redes depois ter falado anteontem sobre o "marginalzinho amarrado ao poste" (sic) no Rio de Janeiro. Debochou quando disse que [ele] "era tão inocente que, em vez de prestar queixa contra os seus agressores, ele preferiu fugir, antes que ele mesmo acabasse preso. É que a ficha do sujeito está mais suja do que pau de galinheiro".
O comentário fazia referência ao adolescente de 15 anos, negro e pobre que perambula pelas ruas do Flamengo praticando pequenos furtos, preso a um poste com as travas de uma bicicleta, nu, na noite da última sexta-feira. Sob o decreto de Sheherazade, "a atitude dos vingadores é até compreensível", afinal, o que resta aos "cidadãos de bem"? "Se defender, é claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E aos defensores dos Direitos Humanos, que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido".
Sheherazade tem razão quando diz que o Brasil tem um dos maiores índices de arquivamento de inquéritos policiais de assassinatos do mundo. Olvida desonestamente apenas que estes números corroboram, na verdade, com esse revanchismo que vitima ainda mais adolescentes, pretos e pobres do Brasil. Somente polícia de SP, por exemplo, mata mais do que a de todos os Estados Unidos. Metade dos PMs presos de São Paulo responde por homicídio. A do Rio de Janeiro executa um a cada 16 mil habitantes, mais do que a média nacional de assassinatos. Entre 2005 e 2007, no Rio de Janeiro, dos 707 casos de "auto de resistência" - como se costuma chamar o "confronto" contra a polícia -, somente 1 PM foi condenado.
77% dos jovens que morreram em 2010 no RJ eram negros, o que representa muito mais do que o dobro de vítimas brancas. Ao contrário do que se sustenta, as UPPs não vieram exatamente para trazer paz às comunidades. Ainda que o número de mortos tenha diminuído depois da instalação das unidades, os desaparecidos - como Amarildo - aumentam progressivamente. Existem denúncias contra 25 das 33 delas espalhadas pelo Rio.
Na cidade de São Paulo, o homicídio é a maior causa de morte não natural entre negros. São também negros 2 a cada 3 mortos pela polícia no município. Uma proporção de 2,3 assassinados para cada 100 mil habitantes, enquanto o índice é de 0,6 entre brancos. O perfil do assassinado é marcado pela cor, pelo sexo, pela idade e também pela região: na esmagadora maioria, eles são jovens, homens e moradores da periferia, tendo a arma de fogo como principal algoz.
Nos comentários da notícia veiculada pelo G1, que desnuda essas estatísticas, desbravadas pela ONG "Sou da Paz", a sentença era clara: "mais vale um negro morto, que nas prisão gerando custos exorbitantes"; "Depois é racismo quando se diz que negro é bandido". Famosos pela brutalidade, desta vez os comentários foram apagados e essa opção desativada no link.
A imagem que ilustra a postagem de hoje é do perfil do BOPE no Facebook. A página tem mais de 69.000 curtidas e a foto em questão quase 3.000 compartilhamentos com um texto que atribui explica a ação como retaliamento pela morte de dois soldados do grupo. A lista de comentários é simplesmente nefasta. "Não gostou, oculta. É essa porra mesmo".
Foram 6 "suspeitos" também mortos na operação da PM no Morro do Juramento, no Rio de Janeiro, na manhã da última terça-feira. A perícia já se manifestou dizendo que existem fortes indícios de execução.
Por denunciar a gravidade das declarações de Sheherazade, a professora Cilene Victor da Silva tem recebido diversas ameaças de morte, inclusive por telefone, com referências extremamente pessoais a sua rotina de trabalho. Pelo próprio Facebook, a apresentadora pediu que seus seguidores denunciassem Cilene por incitação à violência. Seria cômico não fosse tão trágico.
Os comentários de Rachel Sheherazade sobre o adolescente amarrado ao poste por "justiceiros" não comandaram as execuções destes meninos caídos sobre as escadarias de mais uma favela carioca. Nem precisava. Sua fala tem apenas uma função: autorizá-las.
Abraços,
Murilo
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É verdade que quase tudo já tenha sido dito pela jornalista Rachel Sheherazade, hoje no SBT. Mas é também verdade que pouco tem se reforçado o quanto que, mais do que lançadora de tendências, ela se tornou a personificação do pensamento reacionário que está presente ali no consultório odontológico, na farmácia, na escola de educação infantil ou nas feiras ao ar livre.
Sheherazade é o recalque denunciado por Freud mandado às favas pelas redes sociais sob a máscara do anonimato. Não é necessária muita pesquisa para que algum de seus cavaleiros se manifestem com o discurso de que ela tem personalidade. Não tem. Parafraseando Ricardo Sica sobre Lobão, Sheherazade é um comentário do G1 que fala. Assumiu isso pra si desde o primeiro minuto que apareceu na TV e não escondeu nunca mais.
Agora, a jornalista do SBT está na boca das redes depois ter falado anteontem sobre o "marginalzinho amarrado ao poste" (sic) no Rio de Janeiro. Debochou quando disse que [ele] "era tão inocente que, em vez de prestar queixa contra os seus agressores, ele preferiu fugir, antes que ele mesmo acabasse preso. É que a ficha do sujeito está mais suja do que pau de galinheiro".
O comentário fazia referência ao adolescente de 15 anos, negro e pobre que perambula pelas ruas do Flamengo praticando pequenos furtos, preso a um poste com as travas de uma bicicleta, nu, na noite da última sexta-feira. Sob o decreto de Sheherazade, "a atitude dos vingadores é até compreensível", afinal, o que resta aos "cidadãos de bem"? "Se defender, é claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E aos defensores dos Direitos Humanos, que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido".
Sheherazade tem razão quando diz que o Brasil tem um dos maiores índices de arquivamento de inquéritos policiais de assassinatos do mundo. Olvida desonestamente apenas que estes números corroboram, na verdade, com esse revanchismo que vitima ainda mais adolescentes, pretos e pobres do Brasil. Somente polícia de SP, por exemplo, mata mais do que a de todos os Estados Unidos. Metade dos PMs presos de São Paulo responde por homicídio. A do Rio de Janeiro executa um a cada 16 mil habitantes, mais do que a média nacional de assassinatos. Entre 2005 e 2007, no Rio de Janeiro, dos 707 casos de "auto de resistência" - como se costuma chamar o "confronto" contra a polícia -, somente 1 PM foi condenado.
77% dos jovens que morreram em 2010 no RJ eram negros, o que representa muito mais do que o dobro de vítimas brancas. Ao contrário do que se sustenta, as UPPs não vieram exatamente para trazer paz às comunidades. Ainda que o número de mortos tenha diminuído depois da instalação das unidades, os desaparecidos - como Amarildo - aumentam progressivamente. Existem denúncias contra 25 das 33 delas espalhadas pelo Rio.
Na cidade de São Paulo, o homicídio é a maior causa de morte não natural entre negros. São também negros 2 a cada 3 mortos pela polícia no município. Uma proporção de 2,3 assassinados para cada 100 mil habitantes, enquanto o índice é de 0,6 entre brancos. O perfil do assassinado é marcado pela cor, pelo sexo, pela idade e também pela região: na esmagadora maioria, eles são jovens, homens e moradores da periferia, tendo a arma de fogo como principal algoz.
Nos comentários da notícia veiculada pelo G1, que desnuda essas estatísticas, desbravadas pela ONG "Sou da Paz", a sentença era clara: "mais vale um negro morto, que nas prisão gerando custos exorbitantes"; "Depois é racismo quando se diz que negro é bandido". Famosos pela brutalidade, desta vez os comentários foram apagados e essa opção desativada no link.
A imagem que ilustra a postagem de hoje é do perfil do BOPE no Facebook. A página tem mais de 69.000 curtidas e a foto em questão quase 3.000 compartilhamentos com um texto que atribui explica a ação como retaliamento pela morte de dois soldados do grupo. A lista de comentários é simplesmente nefasta. "Não gostou, oculta. É essa porra mesmo".
Foram 6 "suspeitos" também mortos na operação da PM no Morro do Juramento, no Rio de Janeiro, na manhã da última terça-feira. A perícia já se manifestou dizendo que existem fortes indícios de execução.
Por denunciar a gravidade das declarações de Sheherazade, a professora Cilene Victor da Silva tem recebido diversas ameaças de morte, inclusive por telefone, com referências extremamente pessoais a sua rotina de trabalho. Pelo próprio Facebook, a apresentadora pediu que seus seguidores denunciassem Cilene por incitação à violência. Seria cômico não fosse tão trágico.
Os comentários de Rachel Sheherazade sobre o adolescente amarrado ao poste por "justiceiros" não comandaram as execuções destes meninos caídos sobre as escadarias de mais uma favela carioca. Nem precisava. Sua fala tem apenas uma função: autorizá-las.
Abraços,
Murilo
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirO que esperar da musa dos Olavetes? Além de servirem para defecar pela boca, garantem o papel na sociedade de levantarem, vez ou outra, discussões referentes aos direitos humanos. O meu Didi Mocó interior se contorce cada vez que impropérios são disferidos pelas fossas orais de Sherazedas falantes: "Huuummm santa, tá nervosa. Cadê os direitos rumanos?" Os cidadãos "de bem" seriam os primeiros a crucificar o bandido Jesus de Nazaré pelo fato de ser um marginal naquela época. Ah, foda-se isso tudo, eu vou ver um filme do Charles Bronson e imaginar o quanto a sociedade seria beneficiada se tivesse um herói como o Vigilante! Abraços, Neto...
ResponderExcluirhahaha Abraço!
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