O episódio envolvendo o meia Tinga ontem no Peru está longe de ser um caso isolado no futebol: é mais um no mundo da bola e tem uma pitada de xenofobia em sua reação
por MURILO CLETO
Ontem o Cruzeiro saiu derrotado para o Real Garcilaso em Huancayo, no Peru, em partida válida pela fase de grupos da Taça Libertadores. Resultado mais do que normal, assim como o tratamento recebido pelo meia brasileiro Tinga, que foi obrigado a ouvir a multidão nas arquibancadas imitando o som de um macaco toda vez que pegava na bola. Normal, pois o episódio no Peru não é uma nota isolada no futebol, mesmo nos dias de hoje - em que não somos racistas, certo, Ali Kamel?
Em 2005, o ex-jogador do São Paulo Grafite, em jogo também da Libertadores, foi expulso no Morumbi depois de reagir aos insultos racistas do zagueiro argentino Leandro Desábato, do Quilmes. Após diversas referências racistas a atletas negros brasileiros no jogo disputado na Argentina, a própria direção do clube portenho enviou um pedido de desculpas ao São Paulo, que aceitou, mas o episódio voltou a acontecer, em campo, na capital paulista. Negrito de mierda foi o que Desábato disse a Grafite.
De acordo com o Boletim de Ocorrência aberto pelo jogador brasileiro, Desábato ainda tinha mandado Grafite enfiar uma banana no ânus - evidentemente não pronunciado desta maneira. O delegado acatou a denúncia e mandou prender o argentino, que respondeu não pelo crime de racismo, mas por injúria com agravante de discriminação racial. Desta forma, depois de duas noites na cadeia, pagou finança e foi liberado.
O El Clarín manteve por horas uma manchete no ar em que dizia que Desábato havia sido expulso "apenas" por chamar Grafite de "negro". Ora, existe uma diferença razoável entre se referir a alguém como negro por intimidade ou afeto e usar a carga do termo pra uma referência pejorativa. Dizer que um dado biológico - a cor - não consiste num xingamento neste caso é pura desonestidade intelectual.
Ou negrito de mierda não é racismo? Reforçar a cor do impetrado pela ofensa é muito mais do que lembrá-lo de uma condição que está impressa no seu corpo, mas acionar um mecanismo de memória que lhe inscreve todas as atribuições trazidas pela cor: séculos de escravidão e índices inferiores de escolaridade, desenvolvimento e salários muito abaixo da média branca, por exemplo.
O exercício praticado por Desábato é a materialização das piadas com bananas, com "dia de preto", com "olhe a cor, só podia, né?", entre outros chavões ainda hoje defendidos por uma geração de humoristas tão criativa quanto desafiadora dos paradigmas da sociedade.
À época, quem diria, Marcelo Tas veio a público pra dizer que o caso era "uma tempestade em copo d'água" e que "acusar o argentino como se o cara fosse um Hitler, pra mim passou do ponto". Rapidamente os jogadores argentinos do Corinthians manifestaram-se com a defesa de que o país não é racista e que o episódio tinha sido motivado, muito provavelmente, pelo clima acalorado da partida.
"Clima acalorado", aliás, tem sido o principal contemporizador de ofensas dentro dos estádios. Como se não bastassem os insultos misóginos ("filho da puta" para jogadores e "biscate" para a bandeirinha) e homofóbicos ("viado"), o racismo, cada vez menos permitido oficialmente no espaço público, tem encontrado um território de exceção onde esbravejar virou também sinônimo de escancarar todo o preconceito recalcado pelo "politicamente correto", como costumam debochar.
Na Rússia, o Zenit São Petersburgo carrega o orgulho de não admitir a contratação de atletas negros no seu elenco. Um grupo de torcedores publicou recentemente uma carta em que explica a sua postura:
“Não somos racistas, mas para nós a ausência de futebolistas negros no plantel do Zenit é uma importante tradição que reforça a identidade do clube. Somos a equipe mais ao norte das grandes cidades europeias e nunca tivemos vínculos com a África, a América Latina, Austrália ou Oceania. Não temos nada contra habitantes destes continentes, mas queremos que joguem no Zenit atletas afinados com a mentalidade e o espírito da equipe”
Apesar de não terem nada contra habitantes de outros continentes, foram os torcedores do Zenit que, em 2011, ofereceram bananas ao jogador Roberto Carlos, ex-Palmeiras e seleção brasileira, antes de partida válida pelo campeonato russo. Em 2008, a torcida chamou os jogadores do Olympique de Marselha de macacos. Na ocasião, a UEFA cogitou excluir o clube da competição continental, mas ficou satisfeita apenas com o pagamento de uma multa. Dick Advocaat, técnico holandês do clube russo, afirmou que não pedia a contratação de jogadores negros para não desagradar a torcida. Até hoje nenhum negro veste a camisa do Zenit.
Essa também não foi a única experiência de Roberto Carlos com o racismo no futebol. Apenas três meses depois dos insultos em São Petersburgo, o lateral esquerdo foi alvo de mais bananas no duelo contra o Krylya Sovetov, ainda pelo campeonato russo. Em 2005, quando estava no Real Madrid, foi a vez da torcida do La Coruña destilar o seu ódio racial contra o brasileiro.
No início do ano passado, o zagueiro ex-Palmeiras Danilo foi condenado a pagar 540 salários mínimos por ter ofendido o zagueiro Manoel, do Atlético-PR, durante partida do Campeonato Brasileiro de 2010. O atleticano foi chamado de "macaco do caralho" depois de uma disputa de bola na área alviverde.
Outro jogador que é alvo constante de xingamentos racistas é o atacante italiano Mario Balotelli. Foram dezenas de casos em que torcedores imitavam macacos ou o vaiavam efusivamente nas arenas. Abandonou o gramado por diversas vezes, mas ainda assim os insultos continuam. Os "Ultras", na Itália, são conhecidos pela forte ligação com o Forza Nuova, agremiação política de extrema direita no país. Mesmo Francisco Totti, um dos maiores ídolos da história da Roma, teve a camisa que jogou aos fãs devolvida pelos ultras da curva sud, descontentes com o seu posicionamento político de centro-esquerda.
Talvez seja a Alemanha o país que mais exponha essa tensão racial nas arquibancadas. O Hansa Rostock, hoje na 3ª divisão da Bundesliga, chegou a ser multado pela Associação Alemã de Futebol depois que torcedores entoaram cânticos racistas direcionados ao atacante Asamoah, do Shalke 04. Em 2011, antes da derrota por 3x1, a equipe de Rostock recebeu os piratas do St. Pauli com uma chuva de bananas no gramado. O caso ganhou certa atenção na imprensa, mas a brasileira preferiu não relacionar o episódio a qualquer manifestação racista ou xenofóbica.
Uma das raras exceções no universo do futebol, o St. Pauli ganhou notoriedade mundial depois que, especialmente a partir dos anos 1980, assumiu a postura progressista e varreu qualquer organização neofascista dos arredores do Millerntor, seu estádio em Hamburgo. No seu estatuto, assume as insígnias antirracista, anti-homofóbica e antinazista. Ao símbolo oficial do clube, uma igreja do bairro nos anos 1910, juntou-se a caveira como emblema desta guinada. Mês passado, outra exceção, os Bukaneros, do Rayo Vallecano, levaram uma faixa para o estádio com os dizeres "minha vagina, minha escolha", em protesto contra a nova lei anti-aborto na Espanha. Na arquibancada das Brigadas Autônomas Livornesas, na Itália, um dos principais cânticos é "quem não pula é fascista".
Já faz algum tempo que abandonei a prática de assistir jogos de futebol em bares. Com os nervos a flor da pele, o espaço cheio de gente e um ódio que espuma, os torcedores revelam com muito mais facilidade quem são de verdade fora dali. Cansei de ouvir "seu preto filho da puta" ou "ô macaco filho duma égua" pra toda e qualquer investida de adversários ou companheiros.
Ainda que o lamentável episódio de ontem envolvendo Tinga no Peru tenha sido lembrado e comentado pela imprensa, é fato que ele passou longe de ser um evento isolado. E mais: a revolta contra o preconceito, neste caso, está vindo acompanhada de outros, como a "surpresa" de uma manifestação racista vir de um país como o Peru. Se tivesse vindo da Europa, talvez tivéssemos aceitado com mais naturalidade. Existem até surtos de ironia com o fato de que peruanos não têm moral para ofender ninguém racialmente, como aquela velha piada infame do nazista negro.
De qualquer forma, os estádios são uma tenebrosa amostra de como o racismo ainda está tão enraizado quanto os hábitos mais comuns do cotidiano. Espaço potencializador das emoções humanas mais recalcadas pelo convívio social civilizado pro além dos seus muros, tornaram-se esse território onde se permite tudo, inclusive voltar ao século XIX.
Abraços,
Murilo
Quando o assunto é racismo, a mídia é sensacionalista. Vi uma matéria em que o repórter brasileiro, se infiltrou na organizada do Atlético de Madrid, declaradamente racista, esperando algum depoimento contra a naturalização espanhola de Diego Costa. Qual foi a surpresa do repórter em ouvir elogios e palavras otimistas quanto a sua participação na Copa do Mundo defendendo a Espanha. Outra torcida que é conhecida por arrumar treta é a do Lazio. Tem um video dos torcedores elogiando o Hernanes. Racismo no futebol é relativo, claro que rola a xenofobia mais para desestabilizar o jogador, assim como acontece com o árbitro, bandeirinhas (homem ou mulher) ou técnicos. Claro que não podemos esperar bom senso de atitudes racistas, mas a própria mídia propaga que nas arquibancadas (pelo menos no Brasil) o torcedor vai para extravasar suas emoções "reprimidas" em sua rotina. Então você está apto para ir ao estádio é xingar o quanto puder. Quando o ato de racismo é contra brasileiros, a mídia se assusta e brada: "como pode, o futebol brasileiro é o maior do mundo e o maior jogador de todos os tempos é negro". O racismo tem que ser combatido com rigor, mas esperar que isso parta das organizadas ou dos próprios dirigentes do futebol é ser utópico demais!
ResponderExcluirAbraços
Acho que ninguém espera realmente que essa iniciativa venha, de fato, das organizadas. O que é inaceitável é o fato de o estádio ter se tornado esse território onde tudo é possível, mesmo a intolerância.
ExcluirE acredito que sua memória esteja bem seletiva, sobretudo em relação ao time da Lazio. Não foi uma nem duas vezes que o clube foi punido por ofensas racistas. No próprio derbi romanista, o atacante Di Canio fez a saudação fascista para os torcedores, e foi ovacionado por isso.
Não existe racismo relativo.
Abs