quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Medos Privados em Lugares Públicos

Qual a relação entre a caixa de comentários na internet e os acidentes de trânsito





Na semana passada, o artigo Metal Sheherazade derrubou algumas barreiras limítrofes e foi parar no blog Farofafá, da Carta Capital. O número de visualizações foi - e tem sido até agora - assustador. Um rápido passeio pelos compartilhamentos do texto pela revista no Facebook dá uma dimensão da repercussão. Consequência quase inequívoca em ocasiões como estas são os comentários. Eles são muitos. E não têm a menor intenção de parecer apenas fração coadjuvante de uma paisagem.

De alguns que li, separei os melhores - não apenas os direcionados a mim - para degustação:

Annie Hall   Responder
Te perturbei, não, palhaço? 
Lua Lua   Responder
Essa Annie Hall é uma JUMENTA que deve fazer seu mestrado na UNIBIBOCA já que não entende uma virgula sequer de música. [...] Annie Hall, tá gastando muito dinheiro na UNIBIBOCA com seu mestradinho meia boca em história, aproveita essa grana e compra alguns livros de história da música, sua ANTA! 
Max de Macedo   Responder
Assim como eu você deve está cansado de esquerdices esquisofrênicas e de direitices insanas [...]. Vamos começar a dizer que funk é lindo para não ser a próxima vítima dessa raça!! 
Mario   Responder

26 anos, né? Você deve estar chateado porque o Justin Bieber foi preso. E claramente não faz a menor ideia do que tá falando. Tenho pena dos seus alunos. Vai se informar, moleque . 
Bruno Rafael   Responder

Mais um apedeuta que se julga escritor, esquerdoide, e que mama nas tetas do estado. 
Henrique Farias   Responder

Kkkkk… texto muito tosco. Tentar comparar James Brown a Mc Catra e cia é algo tão ridículo que chega a dar dó. Não quero nem entrar no mérito das letras pq isto é óbvio demais para mim… digo isso estritamente do ponto de vista musical mesmo. Alguém que se diz “guitarrista”, “violonista”, “vocalista”, “gaitista” e o diabo a quatro, querer comparar um som monofônico sem melodia e harmonia com o som produzido por James Brown?! Esse cara deve ser guitarrista no Guitar Hero… kkkk 
Renata Vasques   Responder

Funk é musica de oprimido, rolezinho é movimento social….ok quando fores assaltado não reclama é um desfavorecido se empoderando encima do seu lombo, quando for violentado relaxa e goza, afinal esta sendo atribuído a você o papel de coadjuvante, como objeto libertador, para que o desajustado possa se realizar sexualmente ! 
HENRIQUE ÀLEXIS   Responder

O QUE OS BRANCOS DEVEM FAZER É TIRAR ESSAS MÃOS PORCAS DE CIMA DA MÚSICA NEGRA ! ! ! 
Carlos T.   Responder
Mas que lixo. Nunca li tanta bobagem e pasmaceira num post só.
Quanta picaretagem. Vago na medida de sua mediocridade. 
Décio   Responder

Tomem todos em seus respectivos cus.

A atriz Sandra Bullock foi notícia no início do mês quando sentenciou que "nenhum ser humano deveria ler a caixa de comentários ou se procurar no Google a qualquer hora". Confessou à revista People que decidiu procurar despretensiosamente pelo seu nome na ferramenta de buscas e se arrependeu: 

"De algumas coisas eu tenho muita consciência. 'Sandra Bullock já passou dos 40' apareceu muito. Eu sei disso. 'Sandra Bullock já está muito além dos 40'. Sei disso também. 'Não há nada especial na atuação dela. Ela não é particularmente atraente, não a suporto, ela é mediocre. Ela passou dos 40'"

"Havia muitos comentários sobre quem eu namorei. Alguns são verdadeiros e alguns eu nunca admitirei. Fui lembrada que já dei uns amassos na Meryl Streep. Fora das telas, não necessariamente uma escolha dela. Eu meio que a peguei de surpresa"

Na última segunda-feira, completou-se o primeiro ano da tragédia na boate Kiss em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Quando a primeira notícia sobre o caso foi publicada, nas caixas de comentários choveram não tantas manifestações de solidariedade aos familiares das vítimas ou lamentos próprios de um evento tão perturbador, mas enxurradas de ofensas morais aos jovens que estavam numa boate, e não numa igreja.

Desde que começou a usar o Tumblr, em 2010, Lindsay Bottos tem recebido toneladas de comentários anônimos extremamente grosseiros sobre as suas fotos que frequentemente iam para o ar. Seus "defeitos" eram a magreza, as axilas não depiladas, entre outras características criminosas como ser ela mesma. O grau de violência das manifestações era tão assustador que Lindsay fez disso um projeto de arte: junto a cada foto, um comentário anexado como parte da imagem.

  

Blogueiro do Chuva Ácida, endereço virtual que combina brilhantemente a realidade local de Joinville com as questões político-sociais do mundo, o professor doutor da Universidade Federal do Paraná Clóvis Gruner conta que foi graças a alguns destes "gracejos" que a equipe do sítio decidiu moderar os comentários para, ao menos, não permitir ofensas particulares aos autores: "No fim do ano passado, um anônimo comentou que eu era insuportável e que tinha pena da minha mulher e do meu filho, que conviviam comigo". Ainda assim, seus artigos quinzenais continuam sendo alvo de um ódio inexplicável. Basta dar um "rolezinho" nos comentários da sua postagem sobre os... rolezinhos

Bom, nem tão inexplicável assim. A estridência dos comentários é parte de uma confusão já denunciada algumas vezes aqui mesmo no Desafinado. Público e privado são universos que não coabitam desde que o mundo é mundo. São invenção contemporânea de uma clivagem que até o século XVIII não existia claramente.

Criação ética burguesa, a distinção entre público e privado esteve na esteira do rompimento da simbiose entre coroa e nação. O fim do poder absolutista do monarca era também parte deste desligamento emblemático: dinheiro público e dinheiro privado desde então não são mais a mesma coisa. Exército nacional e segurança particular também não, assim como não são mais os mesmos princípios que regem o Estado e a casa do seu governante máximo. Bem por isso que a morada na residência oficial não passa de uma estadia passageira, sentenciada à finitude de um estado provisório, condicionado pela estrutura burocrática da democracia. 

Mas são outros tempos. Tempos em que os espaços público e privado têm novamente se fundido, em grande parte por causa do encolhimento natural do primeiro diante da ascensão do segundo. Isso também em termos físicos. É possível admitir a importância do direito à privacidade ao mesmo tempo em que, por outro lado, são poucas as opções de habitação no coração dos grandes centros urbanos além de cubículos justapostos denominados apartamentos. Criados para apartar visualmente uma convivência inevitavelmente próxima, eles são uma bela referência do quanto distância e proximidade estão separados por uma linha tão tênue quanto a faixa de concreto que os separam.

Estes também são os tempos do ônibus lotado que assiste um de seus passageiros berrar ao telefone com o amigo do outro lado da linha. Pode ser por dezenas de minutos. Terminada a ligação, os fones de ouvido voltam ao seu lugar de finalidade, enquanto o usuário checa seu feed no Facebook, carregado com novas atualizações de status e lugar dos amigos de rede. Numa fração de segundos, a janela para o público se fecha e o privado assume as rédeas de uma jornada solitária no interior do coletivo.

Na sua dissertação de mestrado, defendida em 2002, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a socióloga Alessandra Olivato abordou a problemática do caos nas grandes cidades a partir de uma perspectiva inovadora. De acordo com a sua pesquisa, existe uma correlação de causalidade entre a dificuldade de delimitação dos espaços e os altos índices de acidentes e mortes no trânsito: "não há noção de espaço público e de civilidade na orientação da conduta dos usuários de trânsito em São Paulo". Olivato destacou também que "a tentativa de cumprir a lei não está relacionada ao bem comum, mas a princípios religiosos, ao caráter ou à boa educação familiar". 

Relacionado ao lugar do desagradável, o espaço público também tornou-se sinônimo de competição. Afinal, é nele que se batalha por uma nova vaga de emprego ou cadeira nas Universidades. A privatização do espaço público é o que erigiu a construção de "muros" entre as pessoas e, neste sentido, avalizou a ideia de que, se as leis são consideradas injustas pelo cidadão, já existe então motivo suficiente para burlá-las. Resultado: o trânsito é a maior causa de mortes entre jovens de 15 a 29 anos no Brasil. Alessandra Olivato ainda reforçou que nada menos que 90% destes acidentes são determinados pelo fator humano.

Talvez a lógica dos carros seja a ideal para a atual relação do homem com o espaço público. Mais do que através deles e da sua tecnologia, os carros substituíram a experiência do sujeito com as cidades à medida que a ausência de preocupação com o bem-estar comum invadiu as ruas de grandes ou pequenos centros urbanos. O carro é uma oportunidade de deslizar pela cidade sem efetivamente estar nela. Bunker móvel com alto valor de mercado e apelo estético, oferece TV, blindagem, som, DVD, poltronas reclináveis, ar-condicionado, celular, internet e até relaxamento para simular a realidade confortante do lar. 

Esse é o panorama de uma rua que mais parece um autódromo. Se no interior do um espaço privado as regras são individuais - ou, no máximo, familiares -, o resultado não poderia ser outro: o caos.

É nesta lógica que estão inscritos os comentários da internet. Seu espaço é indiscutivelmente público. São milhões de usuários que podem acessar o mesmo endereço e conviver como em qualquer sala de estar. Mas o seu mecanismo de inclusão é privado: é no interior da minha casa, do meu bunker, que o meu aceno público se manifesta. Não por acaso, o comportamento na rede se assemelha ao da casa, afinal é nela que a face do íntimo se revela aos níveis mais exacerbados. É no interior do lar que a polidez da vida pública dá lugar à selvageria que somente a privacidade pode esconder. 

Daí a velha reação do homem ao medo diante do que lhe foge à compreensão, tal qual sua natureza sugere, como ensinou a escola freudiana. É com a violência de um comportamento no interior de lavanderia de roupas sujas em casa que o desacordo na vida pública torna-se escancarado aos moldes extremos da vida privada. Caps Lock ativo, pontos de vulnerabilidade na mira e o gatilho pronto de uma metralhadora semi-automática que carrega a insígnia dos maiores medos privados em lugares públicos.

Apesar da aparência, a caixa de comentários na internet não é uma aberração da natureza. É sintoma de uma civilização que, literalmente, saiu da casinha.



Abraços, 
Murilo

8 comentários:

  1. Parabenizo pelo e-x-c-e-l-e-n-t-e texto! Laércio Amaral

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  2. Artigo ridículo, certamente escrito por um desses babacas socialistas fascistóides reacionários que se acham superiores por analisar o comportamento humano citando burguesia, freud e marx, provavelmente com um cabo de vassoura enfiado no rabo!

    Hahaha, zueira, só pra entrar no clima do artigo... Muito bom, muito lúcido. Há tempos deixei de ler comentários, por terem se tornado o antro do que há de pior e mais radical nas manifestações humanas.

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    1. hahahaha que susto, João! Já ia eu mais uma vez pensar do que adiantava eu ter escrito tudo aquilo. Obrigado!

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  3. Pois continua com seu esforço pra atualizar o blog, porque está a cada semana melhor!

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