No fim das contas, somos todos Leopoldo Pisanello
Apesar do corpulento elenco, com Penélope Cruz, Roberto Benigni e Alec Baldwin, Para Roma Com Amor é um dos menos pretensiosos filmes de Woody Allen nos últimos tempos. O longa-metragem de 2012 é, antes de tudo, um delicioso passeio pela capital italiana, das ruelas do centro histórico ao Coliseu.
Além disso, Para Roma Com Amor é uma grande brincadeira com o homem contemporâneo: neurótico, descolado, celebridade e indigente. Dividido em 4 histórias paralelas, o filme conta também a história de Leopoldo Pisanello, um homem comum da classe média italiana, que acorda religiosamente todos os dias na mesma hora para ir para o trabalho que, aliás, nem se sabe qual é.
Com um trabalho normal, uma família normal, um terno normal, Pisanello não é ninguém além de você e eu. É o símbolo da ascensão de uma classe que não é exatamente mão-de-obra braçal nem, tampouco, dirigente do sistema econômico mundial. Até que um dia, de repente, é perseguido por uma penca de fotógrafos e jornalistas que o abordam na saída da casa para o trabalho. Sem saber o motivo, é entrevistado por repórteres sedentos por informações um tanto quanto triviais: o que você tomou no café da manhã? Prefere geleia ou manteiga? De que jeito gosta do cabelo cortado?
Num rompante, Leopoldo se vê entre limousines e lindas mulheres à disposição. Convidado a estreias no cinema e talk shows, tem a rotina radicalmente transformada pelo universo da fama. Ainda aturdido, pergunta ao chofer: mas por que eu sou famoso? Ora, senhor Pisanello - responde-lhe o motorista - o senhor é famoso porque é famoso. Desesperada, a nova celebridade italiana manda os paparazzi às favas e sai correndo do cerco.
O mundo das celebridades não é bem uma invenção contemporânea, nós sabemos, mas desde a Segunda Guerra Mundial este fenômeno tem rompido barreiras cada vez mais inimagináveis. Entre os anos 50 e 60 do século passado, Elvis e Beatles provocavam ataques cardíacos nas adolescentes do mundo inteiro por onde passavam. Sua simples presença era motivo de tumultos e desmaios. Marilyn Monroe era invejada por donas de casa reprimidas, e sua imagem marcou o mundo por décadas.
O universo da política também não esteve alheio à comercialização do sujeito. No Brasil, Vargas desponta como a maior figura célebre, mas JK, Color e Lula - do seu jeito - não ficam muito atrás. Da direita para a esquerda, os políticos-celebridade multiplicaram-se: Fidel, Kennedy, Mao Tsé-Tung, Pinochet.
Quero muito voltar ao meu ritmo de treino. 2014 vai ser o meu ano!!
Por muito tempo, a noção de celebridade esteve atrelada a determinada especialização. Por exemplo: idolatro John Lennon porque ele é um compositor genial. Marlon Brando é um ator brilhante! Ou mesmo, Kennedy era um homem de ideais. Que seja. O fato é que o direcionamento dos flashes acompanhou o movimento do talento em suas mais variadas esferas. Claro que nem todo talento foi holofotizado, e nem todo holofote se manteve nos maiores talentos - mesmo porque essa ideia depende de certo julgamento de valor -, mas a relação entre fama e especialização é nítida até pelo menos os anos 1990.
Bem recentemente, os reality shows transformaram-se num ponto interessante de inflexão deste paradigma. A partir de então, celebridades podem ser tanto o ator Cauã Reyond, por exemplo, quanto a ex-BBB Grazi Massafera, que pouco apresentou ao público além dos dotes físicos ao longo do programa liderado por Pedro Bial. Inclusive eles se casaram, não? Ah sim, e toda história da união a separação está contada nos folhetins impressos e eletrônicos.
Com o surgimento das redes sociais, no limiar da virada do século, a ideia de celebridade permanece fundamentalmente a mesma, mas com um acréscimo fantástico: a seu modo, qualquer um pode ser uma delas, e a porta de acesso não precisa ser mais a TV.
No Facebook é possível criar diversos álbuns para a publicação de fotos: Amigos, Palmeiras, Rock n' Roll!, Igreja, Família: A Base de Tudo. Costumo entender cada um desses álbuns virtuais como identidades coexistentes e parte do glamour de ser simplesmente... você. Com os amigos, fotos em restaurantes, praias, baladas, etc; com os palmeirenses, bastam algumas fotos estampando a camisa do time de coração; um chifrinho com as mãos e uma camiseta do AC/DC para a galera do rock; um encontro da JUMI para agradar aos filhos de Deus; e um amigo secreto constrangedor com a família pra mostrar que todo mundo se ama.
2014 , é o meu ano ! Vamos surpreender ,fazer mais !
Enquanto em tempos nem tão remotos exibir uma foto pra alguém poderia significar um raro ritual enfadonho de folheamento de álbuns empoeirados, a partir de então é possível mostrar em tempo real tudo - ou quase - que acontece na vida.
Mas afinal, que vida? Qualquer uma. E essa é a grande forma da celebrização do sujeito comum. Em momentos como o Réveillon, é possível sentir que a sua viagem pra Copacabana pode ser a capa da Revista Caras da próxima semana. E pode, mas numa roupagem um pouco diferente. Da sacada do apartamento em frente à praia, é possível imaginar milhares de poses e, ainda, escolher quais fotografias levar ao ar. Pela repercussão da foto, é possível saber quem achou legal e até mesmo especular qual seria uma possível paquera. Ao mesmo tempo, pelo celular, centenas de outras pessoas também estão aproveitando e tentando glamourizar o que pode ser mais um dia de cólica ou enxaqueca.
Se por um lado é bastante improvável que a nossa opinião - de pessoas comuns - vá parar nos noticiários de massa, por outro é razoavelmente compreensível que se peça com tanta insistência pra que alguém, pelo amor de Deus, pergunte algo da sua vida na rede social Ask, por exemplo. O conteúdo das perguntas? Mais ou menos o mesmo daquelas feitas a Leopoldo Pisanello: por que você terminou seu namoro passado? Com quem você gostaria de ficar numa ilha deserta?
O que fez Woody Allen no seu penúltimo filme é basicamente escancarar os desencontros da confusão extrema entre público e privado. Atitudes corriqueiras como escovar os dentes e pintar as unhas são as que mais ocupam o espaço público de comunicação amplificado pelas redes sociais. Acordar com o cabelo todo bagunçado também.
Esta confusão mudou para sempre os rumos da nossa própria relação com o cotidiano. No Facebook, aliás, Fulana de Tal adicionou um evento cotidiano de 20 de novembro de 2013: ficou noiva de Fulano de Tal. Com a superexposição dos relacionamentos, é possível até vislumbrar um final feliz pro ciúme, que é o seu desaparecimento: o marido de amanhã pode ser o cara que se enjoou de ver em 200 fotos com outras namoradas.
Verdade seja dita, os grandes meios de comunicação já tiveram essa sacada faz tempo, nem que seja em torno da ilusão. No Brasil, a primeira telenovela que realmente fez sucesso foi Beto Rockfeller, em 1968. Seu grande segredo foi usar como protagonista alguém que falava como se falava na rua, assim, sem segredos. Até hoje, nas telinhas, a sofisticação do Leblon é bem-vinda sim, mas não sem o glamour de um pastelzinho frito da Lapa.
As redes sociais não são as inventoras do glamour cotidiano. Mas o que elas trouxeram foi a chance de que o Beto Rockfeller seja qualquer um de nós, reles mortais. Leopoldo Pisanello é isso: o encontro do homem consigo mesmo no caos da contemporaneidade. No fim das contas, somos todos Pisanello.
Antes que eu esqueça: 2014 não é o seu ano.
Abraços,
Murilo
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