quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Haddad e a Saga do IPTU em São Paulo

O que os mais de 10 anos que separam as gestões Marta Suplicy e Fernando Haddad não ensinaram à imprensa e aos governos petistas paulistanos


Brasília, 20 de dezembro de 2013. Com uma canetada, o Ministro Joaquim Barbosa recusou o pedido da Prefeitura de São Paulo para liberar o aumento do Imposto Predial e Territorial Urbano, o famoso IPTU. Na verdade, o episódio é apenas mais um de uma verdadeira saga que se instalou em São Paulo desde a apresentação de projeto de lei, encaminhado pelo executivo, que atualiza a Planta Geral de Valores. É a PGV que determina quanto custa o metro quadrado na cidade. De acordo com esses valores, o IPTU pode tanto subir como também descer, portanto. 

Verdade seja dita, o certame não era nenhuma novidade, nem para a Câmara de Vereadores - que aprovou o projeto em 24 de outubro -, nem para quaisquer meios de comunicação do país. O que faz a gestão Haddad hoje é basicamente cumprir o que determina a legislação municipal de 2009, que no governo Kassab ordenou a atualização bienal da PGV, até agora não cumprida.

Este ano, a execução da lei - ou melhor, seu projeto - virou escândalo. No dia seguinte à aprovação do projeto pela Câmara, o Brasil Urgente levou uma enquete ao ar com a seguinte questão: "você se sentiu traído pelos políticos?" Com todo o escândalo feito por Datena, a votação cravava "SIM" com pelo menos 70% dos votos.

Por incrível que pareça, a peça armada pelo programa da TV Bandeirantes também não foi nenhuma surpresa, pelo menos para quem tem uma memória razoavelmente vívida sobre a relação entre as administrações públicas petistas paulistanas e a mídia.

Marta Suplicy não foi a primeira mulher - e tampouco a primeira petista - a governar São Paulo. Antes dela, em 1989, Luiza Erundina começou uma queda de braço com a imprensa paulistana que resultou numa das primeiras frentes de oposição midiática após a redemocratização do país. É dela, Erundina, a tentativa de apresentar para a Câmara de Vereadores a lei do "IPTU Progressivo", rechaçada pelo legislativo e pelos meios de comunicação. Como não havia reeleição neste período, Eduardo Suplicy foi indicado pelo partido para a sucessão e, apesar de toda a bagagem política, foi derrotado nas eleições de 1992 para ninguém menos que Paulo Maluf.

Em 2000, foi o mesmo Maluf o derrotado, no segundo turno, para Marta. Com a maior cidade do país na mão, a prefeita foi alvo de uma das maiores campanhas jornalístico-publicitárias da história. 8 anos depois de um governo malufista - aquele que rouba mas faz -, seria natural que a rejeição da imprensa realmente fosse pública e notória, mas não de maneira tão avassaladora.

Fevereiro de 2003: mais exatamente no dia 10. 835 mil crianças da rede escolar recebiam, gratuitamente, material da prefeita através da Secretaria Municipal de Educação. 

A matéria da Folha? "Ex-secretários criticam pressão e marketing". Um deles, Nélio Bizzo, escreveu no dia seguinte para o Painel de Leitores esclarecendo: "Não concordei com o uso do meu nome na matéria, desvirtuando o que disse e invertendo meu posicionamento frente às políticas da Secretaria de Educação". Continua o ex-secretário: "considero suas políticas corretas e sinceramente continuo torcendo para que os programas surtam o efeito desejado". A outra secretária citada, Eny Maia, também foi ouvida novamente no dia seguinte, e com opinião francamente favorável à gestão. O Estadão, por sua vez, disse - sem citar fontes - que o déficit de educação infantil de alunos na rede pública municipal era de 200 mil alunos, quase 10 vezes menos que o aferido pela Secretaria Municipal de Educação, cerca de 2 anos antes.

Ainda que o número de unidades escolares construídas em 2 anos pelo governo Marta tenha sido quase igual ao do governo Celso Pitta em 4, a reportagem do Estadão diz que foi o Ministério Público Estadual quem, através de acordo, colocou 9 mil crianças na escola, mesmo que antes deste acordo a Secretaria tenha aberto mais de 40 mil novas vagas no município.

Em 2002, aliás, a Prefeitura Municipal de São Paulo investiu mais de 2,47 bilhões na Educação, algo em torno de 32% da arrecadação do município, e a maior soma já investida no setor em toda a sua história. Na imprensa, silêncio sepulcral sobre o assunto. Um editorial do Estado de S. Paulo, em janeiro de 2003, chegou a aventar que a gestão Marta Suplicy alterou a Lei Orgânica do Município, o que nunca aconteceu.

Um dos casos de maior repercussão aconteceu em novembro de 2002. A chamada de capa da Folha de S. Paulo dizia, em letras garrafais: "Prefeitura de São Paulo deixa de pagar R$ 3 bi à União". Resultado: o dólar fechou em alta, a bolsa em baixa e o risco-país subiu. Marta e seu secretário de finanças, João Sayad, correram para desmentir a falsa informação, que só foi esclarecida pelo secretário da Tesouro Nacional, Eduardo Guardia: "não existe calote. O município de São Paulo está absolutamente em dia com os seus compromissos, e tem pago as parcelas rigorosamente no prazo. O que a Prefeitura fez foi apenas uma opção prevista no contrato. Não existe nenhum descumprimento de contrato nem flexibilização". No dia seguinte, quase todos os veículos foram obrigados a corrigir a informação. O Jornal da Tarde - que pertence ao Grupo Estado -, no entanto, publicou manchete com os seguintes dizeres: "Marta dá um susto no Brasil. Foi um engano". 

A Folha de S. Paulo chegou a divulgar que a prefeitura estava pagando cinco vezes mais que o pre;o de mercado por palmeiras imperais, numa força-tarefa para arborização da cidade. Na semana seguinte, o jornal foi obrigado a se desmentir, constatando que, em algumas regiões, o preço do produto licitado correspondia a mais de 40% a menos que o preço de mercado.

Dezembro de 2002: o governo de São Paulo cumpria a sanção do Senado Federal que, em abril do mesmo ano, autorizava a cobrança de uma taxa de iluminação pública, já adotada em diversos municípios do Brasil.

O Estadão publicou um editorial intitulado "Fúria arrecadatória", em que afirma: "a prefeita ainda acha pouco esse festival de alíquotas e multiplicação de impostos".

Na mesma esteira, em janeiro de 2003, o editorial "A esperteza da prefeita", do Jornal da Tarde disse que "o IPTU foi o primeiro item de um pacotaço de dona Marta, que atacou logo em seguida com as taxas de lixo, de iluminação [...]".

No fim de janeiro de 2003, 8 pessoas morreram em Taboão da Serra em virtude das chuvas. O Estado de S. Paulo usou as mortes, que - grifo - não ocorreram em São Paulo, sob o título: "Morte expõe descaso com áreas de risco". Até 2003, a gestão Marta realocou 3.500 famílias que viviam em situação de risco. Também nenhuma linha sobre o feito.

Sobre uma série de medidas anunciadas pelo governo, o Jornal da Tarde chegou a publicar um editorial chamado "O Ato Institucional de dona Marta", em outubro do primeiro ano de administração da petista. Ainda, o editorial "IPTU enganador" afirmou que o aumento do IPTU na cidade seria bancado pelos 200 maiores contribuintes da cidade. O jornal errou por pouco: eram, na verdade, 200 mil.

O Jornal da Tarde mentiu também sobre a limpeza pública. Apesar de os serviços contratados terem sido iniciados em fevereiro de 2002, o veículo chegou a dizer que a licitação para o trabalho ainda não havia sido feita, mesmo que o próprio Estado de S. Paulo tenha divulgado, meses antes, um balanço sobre a limpeza na cidade, considerado "positivo", de acordo com ele mesmo.

Marta suportou o inferno astral até 2004, quando perdeu a reeleição para José Serra. Logo no início do mandato, o tucano fez um estardalhaço a respeito das contas da prefeitura, dizendo que o rombo nas finanças era de quase 2 bilhões de reais, apesar da aprovação do Tribunal de Contas do Município. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal, com a ex-prefeita acusada de descumprir a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Diante da fragilidade das provas, o ministro Eros Grau arquivou o processo.

Apesar de não ter sido reeleita, Marta Suplicy foi recentemente escolhida como a melhor prefeita de São Paulo em 30 anos. No ano da reeleição, inclusive, seu índice de aprovação beirava os 50%.


  

Nesta década que nos separa da gestão Suplicy em São Paulo, pouca coisa mudou. Numa conversa com jornalistas, o prefeito Fernando Haddad confessa ter recebido, pessoalmente, ligação de "um dono de muitos meios de comunicação", dizendo que "não daria trégua à prefeitura e que colocaria todos os veículos contra o IPTU progressivo." Não precisou nem dizer quem, mas do outro da linha estava ninguém menos que Johnny Saad, dono do Grupo Bandeirantes e conhecido proprietário de uma enorme rede de imóveis em São Paulo. E olha que o grupo recebeu nada menos que a bagatela de R$ 900 milhões nos últimos 12 anos do governo federal, 9 deles sob o comando do PT.


Saad cumpriu a promessa. Haddad foi simplesmente massacrado não apenas pelos seus veículos mas por todos os outros. Mídia, Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e PSDB articularam-se tão rapidamente que nem mesmo a legislação municipal foi capaz de deter a liminar concedida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que ordenou a suspensão da lei do executivo. Não é segredo para ninguém que Paulo Skaf, presidente da Fiesp, é nome certo do PMDB na disputa pelo governo do estado de São Paulo em 2014.

O comunicado da prefeitura diz que o reajuste do IPTU seria diferenciado por tipo de imóvel e localização. Em média, 10,7% seria o aumento do imposto para os residenciais e 31,4% o de comerciais. Mas o aumento da média, não significaria, necessariamente, prejuízo no bolso do trabalhador. Pelo contrário: distritos do Parque do Carmo e do Campo Limpo, por exemplo, teriam reduções médias de 12,1% e 2,7%, o que beneficiaria a população mais pobre da cidade. 

Em resposta, o vereador Eduardo Tuma (PSDB) - sobrinho de Romeu Tuma, aquele que era delegado do DOPS na Ditadura Militar - disse: "não posso admitir um projeto como esse, que atualiza a PGV de acordo com picos da especulação imobiliária". Hoje, o valor venal dos imóveis - utilizado como base para a cobrança do IPTU - é de 30% em relação ao seu valor comercial em São Paulo. Se aprovada, a nova lei determinaria que este valor aumentasse para 60% (e não 100%), o que confirma a levianidade da acusação de Tuma.

Hoje, o IPTU é a principal fonte de receita de qualquer prefeitura. Em São Paulo, corresponde a cerca de 15% de toda arrecadação. Por coincidência, talvez, o UOL publicou reportagem justamente em 23 de outubro deste ano - um dia antes da aprovação da lei - sustentando que a Prefeitura de São Paulo não sabe para onde vai metade do IPTU arrecadado. Ora, qualquer especialista de meia-tigela em finanças públicas sabe que o recurso do IPTU é próprio e, como tal, pode ser aplicado em qualquer setor da administração, ao contrário de repasses específicos de outras esferas do poder público, como através da liberação de emendas ou da celebração de convênios.

Se todo mundo admite, por um lado, pagar cada vez menos o imposto do carro porque o seu valor comercial diminui, por que tanta gritaria a respeito da atualização - e não do aumento, portanto - do valor venal dos imóveis? A resposta pode ser mais complicada que se imagina, mas Fernando Haddad já deve ter descoberto um caminho mais ou menos lógico: não confiar na mídia tradicional.

Hoje, o prefeito de São Paulo admite que falhou no plano de comunicação, inclusive porque sequer tem um. A emissão de comunicados através do site da prefeitura e da imprensa oficial é realmente importante - aliás, legalmente necessária -, mas não substitui o contato com aqueles que vão sentir no bolso - e nos ouvidos - todo o impacto de qualquer medida. 

Comprar briga com a imprensa e sair em pé é uma tarefa para poucos. Na Argentina, Néstor Kirchner peitou os conglomerados de comunicação e se deu ao luxo de não sair candidato à reeleição para abrir espaço para sua mulher, Cristina. Foi eleita em 2007 e, apesar de ter ampliado a luta do marido, foi escolhida novamente para chefiar o país, em 2011, num massacre eleitoral histórico.

A edição de 12 de novembro deste ano do Clarín, que coincidia com a semana da volta da presidente argentina, internada por problemas de saúde, estampava na capa sintomas de uma crise aparentemente insolúvel: "Preços imparáveis: a carne subiu 10% em somente uma semana". Logo acima do título, o "Tema do dia: Inflação sem freio". Enquanto os jornais veiculam o alarde, diversas pichações, em todos os cantos da capital, dizem "Fuerza Cristina". Sua imagem ocupa o espaço público ao lado de Néstor, Perón, Chávez e outros ícones da esquerda latino-americana.  

É bem verdade que os argentinos são muito diferentes de nós em muitos sentidos. Mas a consciência histórico-social das ruas de Buenos Aires não foi forjada abruptamente, e em algum momento da história esse diálogo entre poder público e sociedade aconteceu. Mais do que isso, é constantemente atualizado através de debates que hoje muitas vezes sequer precisam ser mediados pelo poder público. Se entre lojistas e taxistas a visão sobre os Kirchner é a pior possível, nas ruas e centros culturais edições como estas do Clarín servem apenas para situações de emergência no toalete.

Além dos filmes e das carnes - ah, as carnes! - também é possível aprender um pouco de comunicação com os argentinos.  

Erundina perdeu. Marta perdeu. Desta vez, se Haddad perder, quem perde é o Brasil.




Abraços, 
Murilo 

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