A Síndrome de Nero da classe média brasileira e a "elite intelectual" das redes sociais sobre a maior polêmica de janeiro
Foto: Bruno Poletti/Folhapress |
Sempre achei que minha adolescência demorou a chegar. Pra ajudar, estatura baixa, um time de futsal de pelos no corpo e uma coleção da latinhas denunciavam a infância alargada. O crescimento foi abrupto, o time de pelos deu uma evoluída da quadra para o campo, mas a fisionomia sempre acusou idade inferior à real. O que pode parecer o paraíso quando se está na meia idade, é o inferno quando se tem 17.
17 talvez seja a pior idade possível: demais pra ser criança, de menos pra ser adulto. Era uma droga não poder dirigir. Era uma droga não poder beber. Uma vez, prendi os longos cabelos, mergulhei nos Sabonetes Francis e fui pro show de um Pantera Cover, lá no Jardim das Américas, em Curitiba. A entrada custava uns 10 dinheiros. Entrou um, outro, mas quando fui entrar... você não pode. Mas não pode por que? Porque aqui menor de idade não entra. Envergonhado, chamei o resto dos amigos pra dar meia volta em direção ao apartamento assistir umas fitas VHS do Pantera verdadeiro.
Muito tem se falado sobre os "rolezinhos" nas redes sociais. Os rolezinhos são, basicamente, passeios organizados pela juventude periférica de São Paulo desde o fim do ano passado. Aos montes, entram nos shoppings centers pra, como dizem, "zoar, dar uns beijos, tumultuar, pegar geral, sem roubos". A reação ao fenômeno foi imediata: lojistas acionaram a segurança, a PM e até a justiça pra coibir a prática. Sem pestanejar, cada órgão, na sua esfera, fez o que sabe fazer de melhor com esse público, já conhecido de outras primaveras: você não pode.
Antes do estouro nacional da polêmica, Eliane Brum deu a dica de ouro pro significado básico do rolezinho e o motivo da sua rejeição: o passo pra dentro. Os shoppings foram construídos pra manter esse público fora, o que por muito tempo funcionou. Hoje, os objetos de desejo das margens são os mesmos que os do centro e o nariz torto dos seguranças já não é mais barreira pro afastamento.
Por pouco tempo, acreditei que nada mais precisava ser dito sobre o assunto depois do texto de Brum, mas a reação aos passeios e ao próprio texto da jornalista me convenceram do contrário. A atitude de lojistas e autoridades não surpreende, se for levado em consideração o posicionamento da massa pensante na internet. Pelo Facebook, um tal de Doutor Gori sintetizou o "espírito crítico" de boa parte da rede diante dos rolezinhos:
Por pouco tempo, acreditei que nada mais precisava ser dito sobre o assunto depois do texto de Brum, mas a reação aos passeios e ao próprio texto da jornalista me convenceram do contrário. A atitude de lojistas e autoridades não surpreende, se for levado em consideração o posicionamento da massa pensante na internet. Pelo Facebook, um tal de Doutor Gori sintetizou o "espírito crítico" de boa parte da rede diante dos rolezinhos:
A turma do rolezinho bem que poderia diversificar um pouco. Tem o Museu da Língua Portuguesa - quem sabe se interessam em aprender a escrever corretamente; Pinacoteca do Estado - para ter contato com uma fruição estética que ultrapasse o limite de muro pichado e bunda de piriguete; Concertos da Osesp - infelizmente não tem nenhuma música a Anitta no repertório, mas vale a pena; Universidade de São Paulo (exceto FFLCH) - para tomar contato com jovens que buscam melhorar de vida mediante estudo e esforço próprio. Ah, mas é claro: isso é coisa de burguês opressor. Deixa pra lá.
Ele não é o único. Através do Twitter, uma enxurrada de "sugestões" caminharam no mesmo sentido: "Rolezinho no Poupa Tempo para tirar carteira Profissional de Trabalho, ninguém quer!!", disse o perfil Levante-se Brasil. "Ninguém marca um rolezinho pra tirar carteira de trabalho e procurar um emprego, né?" Mas afinal, o que realmente incomoda nesses passeios?
Outro dia, alguém estava horrorizado com o fato de que, nas casas assistidas pelo poder público, há TVs de muitas polegadas e um celular por cabeça enquanto a telha precisa ser consertada. Esse alguém é o espectro de uma classe média inconformada com a ascensão de uma camada que, até ontem, precisou implorar por um tênis, qualquer tênis. Hoje ela quer Nike. E não há nada mais inadmissível do que uma pobreza que não se contenta apenas em comer.
Quando nas mãos da elite, o consumo adquire ares de desenvolvimento. Quando na mão dos pobres, de futilidade. Esta curiosa associação tem muito a revelar sobre a Síndrome de Nero de uma classe tão heterogênea quanto intolerante. Famoso por assassinar a própria mãe, que o colocou no poder, e por colocar fogo no trecho de Roma onde construiria um dos maiores palácios reais que o mundo já viu, o imperador Nero era obcecado por tecidos na cor púrpura. Puniu com a morte quem ousou se vestir de modo similar.
Há muito tempo já se sepultou a ideia de que os regimes ditatoriais instalados na América a partir da metade do século XX tenham sido instituídos exclusivamente pelos militares. Mais do que permissivo, o papel da classe média neste processo decidiu os rumos da Guerra Fria pro lado de cá do Equador. Foi ela que financiou o Comando de Caça aos Comunistas no Brasil. Ela que levou às ruas o movimento Patria y Liberdad, no Chile, autor do boicote que paralisou toda rede de transportes e abastecimento no país - dentre outras peripécias - durante o governo socialista de Allende.
A classe intermediária vê na histeria a principal resposta pros conflitos existenciais causados pela desconfortável posição de quem sonha em ser burguesa e, ao mesmo tempo, morre de temor pelo rebaixamento ao nível operário assalariado. Como se estivesse sendo sugada pro subsolo, atira pra todos os lados e acerta todas as sensibilidades possíveis da desrazão contemporânea.
Quando dispara que a turma do rolezinho bem poderia diferenciar um pouco, visitando a USP para tomar contato com jovens que buscam melhorar de vida mediante estudo e esforço próprio, Doutor Gori e o chorume médio apelam pra queridinha do bando que dobra à direita sem medo de ser feliz: a meritocracia. A USP é famosa pela resistência à adoção de políticas de inserção - cotas - entre seus muros. Dentre os cursos mais concorridos, apenas 1 aluno negro ingressou na instituição em 2013.
Não é de se estranhar que o "Doutor" não recomende um rolezinho na FFLCH, afinal é lá que esta desproporção avassaladora poderia ser problematizada pra algo além de "todo mundo tem as mesmas chances", "são as cotas que instituem o racismo" ou "o racismo está na cabeça das pessoas". Ou é por que lá "todo mundo usa alucinógenos"? Aliás, fumar um na gangue do Doutor é coisa de descolado. Na favela, de drogado.
Essa varredura contra a pobreza nos shoppings hoje não é surpresa. Durante o processo de construção da "cidade maravilhosa", Rodrigues Alves limpou as ruas do Rio de Janeiro no limiar do século passado escoando a "ralé" para as margens. Nos anos 70, Jaime Lerner "limpou" o centro de Curitiba com a velha obsessão paranaense pela ascendência europeia. Poucas analogias funcionaram tão bem desde a fundação da história do Ocidente do que esta entre pobreza e sujeira - e, consequentemente, doença. Até "sou pobre, mas sou limpinho" se inculcou a repetir.
Mesmo o Orkut foi abandonado há cerca de 3 anos atrás porque a "nova classe média" havia tomado conta de lá. Hoje, o grande problema é que estão "orkutizando" o Facebook, certo? Maldito Balneário Camboriú que também foi orkutizado.
Essa é a principal marca ideal da pobreza: a distância. Enquanto ela se mantém longe, o funcionamento do cosmos parece estar em ordem. Com os rolezinhos, a barreira foi rompida e o conceito de espaço público está em xeque.
Com 17 anos, o ódio pelo segurança que me barrou na entrada da casa de shows a tempo de acompanhar o DJ Jeison Metal durou pouco mais de duas horas, talvez pela vergonha. Não existe sentimento pior do que não ser bem-vindo. Mas, neste caso, havia uma regra: menor de idade não entra. Nenhum menor de idade entra. E não precisa ser nenhum PhD como o Doutor Gori pra saber por quê.
A justificativa que hoje encontraram os shoppings é que os rolezinhos causam baderna e afugentam os clientes. Seria verdadeira, não fosse o fato de que estes são espaços regularmente frequentados por excursões e confraternizações, como os "Bixos da FEA USP". "Loooooooko, loko loko loko loko, é FEA USP", centenas gritam sobre as mesas na praça de alimentação do Shopping Eldorado. Os seguranças? Riem, passeiam, vão fazer outra coisa. O que esses jovens universitários têm é a chave de acesso aos espaços públicos: a cara branca e a naturalidade de um rolezinho jamais negado.
Dentre certa ~elite intelectual~ das redes, fez-se chacota das discussões encaminhadas por Eliane Brum e uma porção de jornalistas não muito satisfeitos com a pura definição de que os rolezinhos são uma merda. Multiplicaram-se as piadas sobre a mania de uma esquerda - agora chamada de "caviar" - que enxerga "luta de classes" em tudo. Teve até quem dissesse que faltou Media Training pra um integrante do rolezinho que, em vez de dizer que ia ao shopping para contestar o opressor, confessou estar ali apenar pra zoar.
Sarcasmo imbecil e, acima de tudo, irresponsável. Hoje, a esquerda não celebra o rolezinho. Não vi um cientista social suficientemente imaturo pra dizer que os passeios nos shoppings são uma manifestação consciente de desafio à ordem burguesa capitalista. De fato, não são. Mas a violência da repressão tem se tornado um combustível tão inflamável quanto a letra dos antigos raps da periferia contestadora.
Enquanto se empobrece o debate sobre o fenômeno social destes eventos e suas implicações, reacionários aos rolezinhos conclamam marchas nas casas de Leonardo Sakamoto e Eliane Brum - acusados de defenderem essa baderna toda -, além de outra no Congresso Nacional em... 31 de março. Sim, 31 de março.
Dentre certa ~elite intelectual~ das redes, fez-se chacota das discussões encaminhadas por Eliane Brum e uma porção de jornalistas não muito satisfeitos com a pura definição de que os rolezinhos são uma merda. Multiplicaram-se as piadas sobre a mania de uma esquerda - agora chamada de "caviar" - que enxerga "luta de classes" em tudo. Teve até quem dissesse que faltou Media Training pra um integrante do rolezinho que, em vez de dizer que ia ao shopping para contestar o opressor, confessou estar ali apenar pra zoar.
Sarcasmo imbecil e, acima de tudo, irresponsável. Hoje, a esquerda não celebra o rolezinho. Não vi um cientista social suficientemente imaturo pra dizer que os passeios nos shoppings são uma manifestação consciente de desafio à ordem burguesa capitalista. De fato, não são. Mas a violência da repressão tem se tornado um combustível tão inflamável quanto a letra dos antigos raps da periferia contestadora.
Enquanto se empobrece o debate sobre o fenômeno social destes eventos e suas implicações, reacionários aos rolezinhos conclamam marchas nas casas de Leonardo Sakamoto e Eliane Brum - acusados de defenderem essa baderna toda -, além de outra no Congresso Nacional em... 31 de março. Sim, 31 de março.
Ao contrário do que se ventilou, ninguém é obrigado a gostar de "um bando de idiotas cantando funk na porta da sua loja". Ninguém mesmo. Mas a regra do RG, que eu vi aos 17, essa juventude negra das periferias não vê. Simplesmente porque aqui ela não existe. E o que hoje é uma brincadeira logo pode se transformar em revolta. Não existe sentimento pior do que não ser bem-vindo.
PS: se o "Doutor" fizer um rolezinho no Museu da Língua Portuguesa, vai aprender que o que ele tem de melhor é qualquer coisa menos ensinar a escrever corretamente.
PS²: alguns meses depois, voltei pra finalmente ver o Pantera Cover. Foi uma bosta. Mas eu fui.
Abraços,
Murilo
Excelente texto Murilo!!! me arrebatou.
ResponderExcluirObrigado, Rita! Bom te ver por aqui.
ResponderExcluirBoa Professor, mais uma vez um ótimo texto... Não sei como acabei chegando no seu blog, só sei que já está gravado nos meus favoritos!
ResponderExcluirObrigado, Bruno! Tá aí um dos quase milagres proporcionados pelas redes. Toda quinta-feira atualizo. Abraços!
ExcluirMurilão como sempre foi no âmago da questão. Texto brilhante!!!!
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