quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Vigiar e Proteger no Brasil da Democracia Militar

A verdadeira relação entre o poder de fogo da polícia e a segurança social





O debate sobre o armamento das polícias é tão antigo quanto o surgimento da própria civilização, mas nunca foi tão urgente discutir com números a real relação entre poderio bélico e segurança. Digo "polícias" exatamente porque me refiro à prática do policiamento como aquela que carrega duas funções complementares: vigiar e proteger. 

No Brasil, existem pelo menos 3 modalidades de polícias: a civil (que vigia e protege através das investigações), a militar (que vigia e protege nas ruas os direitos dos cidadãos) e o exército (que vigia e protege as fronteiras do país diante de invasores em potencial, como também costuma ser o caso da marinha e da aeronáutica). Numa epígrafe, seria possível dizer que enquanto o exército nos protege dos outros, a polícia nos protege de nós mesmos. 

Mas, afinal, vigiar e proteger exatamente o que e, principalmente, de quem? A história ajuda a responder. Na antiga Mesopotâmia, o policiamento esteve ligado ao que hoje podemos chamar descaradamente de poder judiciário, que neste caso carregava as marcas de uma fundamentação mágico-religiosa ditadora das interpretações dos fenômenos naturais e sociais. Como não acreditavam na causalidade, todos os acontecimentos eram entendidos como fruto da vontade ou dos atos de alguém. Desta forma, a solução pros impropérios da sociedade às margens dos rios Tigre e Eufrates era cortar os males pela raiz, através da relação entre o conhecimento do estado embrionário da História e o decretado - mas ainda não conhecido -  futuro. Descende daí a vitalidade do papel dos adivinhos: eram eles os responsáveis pela criptografação e interpretação das mensagens encaminhadas pelos deuses.

No século XVIII a.C., o Código Hammurabi delegou sobre as principais aflições da vivência em sociedade e, desta forma, inaugurou a transição do Direito Consuetudinário para o Direito Positivo. Resultado: dos 282 artigos, pelo menos 20 tratam de maneira direta e inequívoca sobre propriedade. O artigo 22 postula que "se alguém comete roubo e é preso, ele é morto".

Na Roma Antiga, praticamente não havia distinção entre entre polícia civil, militar e exército. As mesmas forças que protegiam as fronteiras do império eram as acionadas em casos de distúrbios populares. Em alguns momentos, aliás, a própria guarda pretoriana se encarregava de descer o sarrafo nas revoltas que mais abalaram um dos berços da civilização ocidental.

Com as invasões germânicas, o império romano rapidamente sucumbiu. Com ele também o senso coletivo de proteção. Tanto que uma das primeiras consequências deste processo foi a privatização da defesa das fronteiras, associada à ruralização da sociedade nos chamados feudos. Lealdade ao senhor - e não ao Estado -, era o lema dos cavaleiros medievais que fizeram fama de Capitão Nascimento na mal-apelidada Idade das Trevas. 

Cansado dos anacronismos, lembro apenas que é somente a partir do século XV que a máquina do Estado volta a burocratizar consistentemente o aparato policial diante de todas as preocupações do monarca na formação do Estado Moderno Absolutista. 

Nova guinada significativa observamos apenas no século XIX, quando a industrialização já é uma realidade irreversível em boa parte do mundo e as práticas de controle se complexificam para o mapeamento "inteligente" da criminalidade. É neste momento que surgem o RG, a fotografia e o uso investigativo da impressão digital.

Não seria surpresa de ninguém detectar que a função da polícia no desenvolvimento da Modernidade esteve ligada à proteção da propriedade privada, inclusive dos meios de produção - vide o caso dos ludistas.

Passadas as muitas gerações de polícias no mundo, o fato é que, apesar das atribuições delegadas pela Constituição Federal de 1988 no Brasil, todas elas têm caminhado no sentido da vigilância e da proteção da propriedade, e não da vida, e muito menos dos direitos. Se para alguns o armamento da polícia é sinônimo de segurança, para outros o que resta é correr para as colinas. 

Só a PM do estado de São Paulo, por exemplo, mata mais que a polícia dos EUA: de 2006 a 2010, são 2.262 mortos em "confrontos"; no mesmo período, a polícia de todo o país norte-americano executou 1.963 nas mesmas condições. Para cada 100 mil habitantes, a taxa de mortos pela polícia dos EUA é de 0,63, ao passo que a de SP executa 5,51. Metade dos PMs de São Paulo presos atualmente responde por homicídio.

De acordo com o sociólogo Michel Misse, a polícia do Rio de Janeiro mata um cidadão para cada 16 mil habitantes, enquanto que a polícia estadunidense executa um para cada 1,05 milhão. Mesmo comparados a países latino-americanos cujos históricos estão ligados a guerra civis e ao narcotráfico, os números da polícia do RJ são superiores. Entre 2001 e 2011, foram 10 mil mortos pelos cariocas fardados. Entre 2005 e 2007, dos 707 casos de auto de resistência com autoria reconhecida, foram obtidos registros em 510 deles. Destes, apenas 355 viraram inquéritos, 19 foram encaminhados para a justiça, 3 foram denunciados pelo Ministério Público, 2 foram pronunciados e somente 1 foi condenado. Até esta data, apenas 60% dos desaparecidos retornavam aos seus lares.

A violência da polícia tem cor e lugar

Do Observatório de Favelas, Raquel Willadino sustenta que 77% dos jovens que perderam a vida em 2010 eram negros, enquanto que somente 8% das políticas públicas de segurança apontam recortes específicos que levam em consideração a raça. Apesar de reconhecer a deficiência do foco, o superintendente da Subsecretaria de Planejamento e Integração Operacional Alexandre de Souza, Coronel da PM do RJ, sustenta que o elevado índice de homicídios contra negros corresponde ao "perfil demográfico do estado". 

Mas os números fornecidos pelo Mapa da Violência de 2012 desmentem a especulação. A população do Rio de Janeiro é composta por 47,4% de brancos e por 51,7% pretos e pardos. Ainda de acordo com o relatório, foram 736 mortos brancos para um total de 1899 negros, quase 2,6 vezes mais.

Desde o desaparecimento de Amarildo após interrogatório numa das UPPs no Rio, o debate sobre a atuação da polícia tem acalorado ânimos. Mas este problema representa uma constante nas comunidades cariocas: enquanto o número de homicídios tem caído (68%), o índice de desaparecimentos tem aumentado significativamente (56%). Somente este ano, são 5.900 no Rio de Janeiro. Aliás, no caso de Amarildo, foi o próprio inspetor da Polícia Civil, Halter Pitter, quem orientou o major Edson Santos para combinar os depoimentos dos policiais à Corregedoria.
  
Em 25 das 33 UPPs no Rio, há pelo menos uma denúncia contra algum policial. 62% dos entrevistados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada não confiam na PM e 51,5% atestam que suas abordagens são desrespeitosas e inadequadas. No morro, a principal arma que "protege" é o fuzil.

"Modelo" de segurança

Ao contrário do que pode se pensar, os EUA não são lá essa calmaria toda. Entre os países que ocupam a lista de desenvolvimento humano mais elevado, ocupam a 5ª colocação no quesito violência, sendo proporcionalmente mais seguros apenas que Barbados, Seichelles, Lituânia e Estônia.

Realmente não parece muito justo comparar o desempenho da polícia no Brasil com os exemplos dados por EUA e Europa. Mas se não adianta justaposicionar as polícias daqui e de lá, não custa nada lembrar que o atual modelo nacional de vigilância e proteção foi importado da França no limiar do século XX, e mesmo a divisão estadual das polícias militares parece corresponder a uma tentativa frustrada de federalizar a defesa civil como nos EUA.

Se a intenção é copiar de lá, é certo que mais de um século de defasagem não é o suficiente para cobrir a realidade atual do crime no Brasil. Quando o modelo atual foi implantado, o país tinha cerca de metade da população do Rio de Janeiro atualmente, e as favelas sequer existiam.

Tudo isso porque o engessamento operacional da polícia é apenas um dos sintomas de uma paralisia generalizada. Se nos EUA a opção de ingressar na corporação pode significar, de fato, uma ascensão profissional considerável, no Brasil os policiais de rua viram auxiliares de escritório, com 20 anos de espera por alguma promoção.

Ao contrário do sentido em que caminham as recomendações da ONU e os países europeus hoje, que apostam em gendarmarias nas áreas rurais e policiamento exclusivamente civil nas áreas urbanas, o Brasil insiste no argumento de que precisa de uma polícia mais poderosa do ponto de vista bélico para a vigilância e a proteção. Resta saber de quem. Da gente que não é.



Abraços,
Murilo

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