quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Olho Por Olho

Um breve comentário sobre o assassinato do PM Rodrigo Paes, a prisão e a repercussão dos eventos



A praça de Greve estava lotada em Paris. Era 2 de março de 1757, e o protagonista do espetáculo chegava vagarosamente desde a porta da Igreja, vestido apenas com uma fina camisola. Diante dos olhos de todos, sofria duras chagas como castigo pelo crime de parricídio. Considerado o pai de todos, o rei da França Luis XV fora atacado por Robert-François Damiens que segurava agora a mesma faca com que tentou matar o mandatário máximo do absolutismo francês em pleno vigor a pouco menos de três décadas do seu colapso. Puni-lo era questão de honra para o rei, e mais, exemplo para os demais súditos.

Além da humilhação submetida graças à exposição e os constantes xingamentos proferidos contra si, Damiens também recebeu um sem-número de açoites que pouco a pouco rasgaram cada parte do corpo. Braços, pernas e mamilos decepados recebiam doses cavalares de óleo fervente, chumbo derretido e piche, que eram derramados sobre cada uma das feridas.


Já no patíbulo erguido, diante da multidão, Damiens partiu para uma das cenas finais do seu auto-de-fé: o esquartejamento. 4 cavalos foram colocados à disposição, amarrados a cada um dos membros do seu já debilitado corpo. A partida foi dada, e muito embora fossem fortes, os cavalos não foram capazes de arrancar-lhe as juntas. Depois de algumas tentativas, em meio aos gritos de horror proferidos pelo criminoso, houve nova tentativa, agora com 6 cavalos, também sem sucesso.

Para concluir o destino da condenação, os carrascos decidiram eliminar o problema: cortaram todos os nervos das pernas que impediam a secção da carne. Assim, finalmente, os cavalos partiram mais uma vez e Damiens teve os dois braços e as duas pernas brutalmente arrancados do corpo ainda relutantemente vivo. Lançados ao fogo, os pedaços de carne e o tronco queimaram por cerca de 4 horas.



Muito tem se falado a respeito do lamentável incidente ocorrido no Clube Atlético Fronteira no último sábado, dia 13. Depois de uma confusão generalizada dentro e fora do clube, um grupo de jovens tentou invadi-lo e durante a confusão o tenente Rodrigo Cordeiro Marcelino Paes, que não estava a trabalho, foi morto a facadas. Ainda em meio ao tumulto, o diretor social do clube, Lino Vincenzi, também foi ferido.

Algum tempo passou desde a condenação de Damiens, e a grande verdade é que, pelo menos legalmente, a punição da delinquência tem se tornado cada vez menos vingança e mais justiça. Ainda que as prisões não tenham produzido aquilo que Foucault chamou de "corpos dóceis", é fato que a racionalização das penas deveria ter reduzido a violência não apenas marginal, mas também do Estado. Deveria, pois no frigir dos ovos a violência do Estado tem sido constantemente justificada pela marginal, e a consequência disso é o caos urbano.

"Tem que linxar - (isso, com "x" mesmo) - um sujeito desses todo dia!", diziam alguns no, sempre ele, Facebook. "Vagabundo tem que morrer", escroteiam Jair Bolsonaro, Datena e tantos outros que caem como luva no discurso neo-absolutista revelador de uma vontade de vingança que atropela a constituição e quaisquer direitos minimamente humanos.

E foi o que aconteceu. Já no domingo, testemunhas ouviram da rua os urros dos presos que foram capturados logo pela manhã pelo assassinato no clube. Quase 30 pessoas foram "interrogadas", e o resultado disso é a inversão de todos os valores que a civilização tanto se propôs a defender. De repente, a vingança é encapuzada de justiça. Os presos foram espancados sob a perplexidade dos familiares que se amontoaram em frente à delegacia, e a opinião pública entoa um discurso facínora de apoio baseada na velha lei de talião: olho por olho, dente por dente. Há quem jure que os policiais estão "esperando logo" pela libertação do assassino para dar o devido troco pelo crime.

Claro que já tem alguém aí se remoendo e perguntando: "e o que você faria se fosse com uma filha sua?!" Evidentemente, o mesmo, ou pior. E justamente por conta da minha falta de juízo numa situação dessas que me sinto absolutamente incapaz de ser responsável pelo destino destas criaturas.

Não estou aqui para defender o crime, sob hipótese alguma. Mas para lembrar o talvez esquecido leitor que foram justamente diante destes mesmos argumentos que mais de 400 "subversivos" foram torturados e mortos durante o regime militar; e ainda quase 200 continuam com os restos mortais desaparecidos. Outro período, outras circunstâncias, mas na prática o mais do mesmo: a suspensão dos direitos básicos do indivíduo pelo ódio que enche de vermelho os olhos de quem exerce, na força, o poder. Foi esses dias que o governador Geraldo Alckmin respondeu às críticas pela truculência da PM na reintegração de posse da ocupação no Pinheirinho: "quem não reagiu está vivo", disse.

E tem mais: se se quer que a justiça seja feita, a primeira leitura deste lamentável evento é a de que o inverso se faça bem mais provável. Não deve ser o caso, mas qualquer advogado teria plenas condições de reverter a situação contra o próprio Estado, que pode ser duramente responsabilizado pelos maus tratos com os presos.

Usando a violência marginal como desculpa para a própria, o Estado se torna tão bandido quanto a delinquência que propõe extinguir. Desta forma, prisioneiros do sistema que deveria nos proteger, estamos diante do mal em sua excelência, aquele que se traveste de bem para espalhar o medo, e não a segurança. Estamos como as famílias nordestinas do início do século XX, representadas no filme Abril Despedaçado, que eliminam umas às outras pela "honra": o filho de uma executa o que foi responsável pela morte do filho da outra; o filho da outra elimina o que restou da uma. E no fim das contas não sobra ninguém.

Como disse o nunca repetitivo Ghandi: olho por olho, e o mundo acabará cego.



Abraços,
Murilo.


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