12 anos depois dos atentados em Nova Iorque, como ainda enfrentamos o medo coletivo
Sociólogo de sensibilidade singular, o polonês Zygmunt Bauman diz que dois elementos fundamentais determinam a felicidade humana: liberdade e segurança. O que ele mesmo sabe, no entanto, é que a convivência simultânea dos dois é invariavelmente improvável, pelo menos de acordo com a experiência ocidental que se convencionou denominar de modernidade.
Se existe um grande legado deixado pelo 11 de setembro no mundo ocidental, trata-se da confissão coletiva de que cada vez menos importa esta tal liberdade, ao passo em que cada vez mais se luta pela segurança, a grande vedete do século XXI. Não por acaso, de todos os avanços na direção de políticas públicas internacionais de promoção humana e, portanto, liberdade, restou apenas a fumaça dos escombros do World Trade Center, implodido como um castelo de cartas em pleno centro nevrálgico do mercado econômico mundial numa terça-feira de 2001.
Especularam-se 60.000, 30.000, 10.000 e, por fim, 3.000 mortos foram confirmados no atentado que entrou pros anais da história como "o maior de todos os tempos". E pelo menos no quesito estético este dado é indiscutível. Com transmissão ao vivo simultânea em quase todos os países do mundo, os atentados de 11 de setembro nos EUA não inauguraram a espetacularização do terror, mas potencializaram como nunca um freak show na veiculação de imagens que nos levaram pro interior daquelas duas torres que se estatelaram no chão de Manhattan. Estadunidenses ou não, olhamos pro céu naquela manhã como se um boing fosse passar rasante pelas nossas cabeças e a correria se estendesse de Nova Iorque ao Capão Redondo, de Tóquio à Vila Osório.
Muito rapidamente, autoridades vieram a público para acalmar uma multidão de amedrontados que, no auge do desespero, recorreram a esconderijos de emergência que funcionam no Ocidente da tempestade na casa de Dorothy no Kansas aos ataques nucleares mais potentes.
Nos EUA, a Lei Patriótica deu as cartas do que seria, afinal, a tônica deste século que enfim estava inaugurado. A grande força do mundo desde o fim da Grande Guerra assumia de vez que sem garantias de segurança, autonomia alguma fazia sentido. Tão orgulhosos dos princípios constitucionais que nortearam a construção da "terra da liberdade", aprovaram em tempo recorde um pacotão de medidas que cerceavam liberdades até então intocadas por uma das mais estáveis democracias do mundo contemporâneo.
Dentre outras medidas, a Lei Patriótica permite a emissão de ordem de busca sem que se apresente causa provável e a detenção por tempo indeterminado de suspeitos em locais de transição, como aeroportos e rodoviárias. De quatro para o executivo e as forças armadas, o Congresso americano voou como nunca na direção de um estado de guerra permanente.
Dos incontáveis presos confundidos com terroristas e "interrogatórios" promovidos pelos serviços de "inteligência" norte-americano e europeu, principalmente, restam histórias dramáticas de uma liberdade que dava sinais de falência em território familiar. Porque longe dali ela já havia morrido faz tempo.
Foi também num 11 de setembro, também numa terça-feira de manhã, que aviões sobrevoaram o Palácio La Moneda em Santiago depois da relutância do seu presidente, Salvador Allende, em deixá-lo depois de uma série de avisos vindos... de Washington. Foi com a guarnição da Casa Branca que o general Augusto Pinochet bombardeou não apenas o símbolo do poder no Chile, mas também o sonho de uma América Latina, pasmem, livre.
Eleito democraticamente em 1970, Allende nacionalizou terras e indústrias, enfrentou duma vez só a elite chilena e o primo rico das Américas, e pagou com a vida o preço de uma liberdade que o mundo ainda não estava autorizado a gozar. Em 11 de setembro de 1973, assinou com um tiro de AK-47 na própria cabeça a rendição que militares e americanos exigiam.
A trajetória do Chile não é a única na América, muito menos no mundo: Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia, Peru, Paraguai, Vietnã, Coreia, Cuba e tantas outras nações, de grande ou pequeno porte, viveram experiências similares de usurpação de liberdade baseada numa segurança tão justificável quanto os mais de 200 mil mortos pela "Guerra ao Terror" do nosso tempo.
12 anos depois dos atentados em Nova Iorque, o 11 de setembro de 2013 nos convida para uma inflexão inevitável após exatamente 10 anos de invasão sobre o Iraque, justamente no momento em que se coloca na mesa a decisão de bombardear a Síria para retirar do poder a dinastia al-Assad, eleita, aliás, décadas atrás não pelos sírios mas pela Casa Branca que estendia os seus interesses ao mundo árabe desde a descolonização.
Depois de um ataque de armas químicas lançado contra os rebeldes que ameaçam o presidente que exerce o mandato desde 2000 - e até agora sem comprovação de autoria -, os escoteiros da segurança mundial preparam nova intervenção que tem tudo para soar mais uma vez desastrosa.
Em março de 2003, quando clarões de luz cortavam os céus do Iraque durante a madrugada que mudou os rumos da história do país, o principal argumento da invasão - e que ainda convencia - era a manutenção de armas de destruição em massa pelo governo Hussein. Antigo aliado de Washington, o líder sunita agora fugia como rato numa caçada que terminou quase um ano depois, num buraco perto de sua cidade natal.
As armas de destruição em massa nunca foram encontradas. Mas isso não impediu que, 10 anos depois do início da intervenção, 190 mil pessoas fossem contabilizadas mortas na operação. Deste montante, quase 140 mil são civis. 4,5 mil são militares norte-americanos e 3,5 mil são contratados. As forças de segurança do Iraque perderam mais de 10 mil vidas. Morreram ao todo mais de 300 jornalistas e prestadores de serviços humanitários. E estes são apenas os números oficiais registrados. Os reais provavelmente nunca saberemos.
Já são mais de 2,2 trilhões de dólares gastos num projeto que tinha tudo pra ser abortado com a eleição de Barack Obama: o melhor discurso, as melhores propostas, e certamente a maior esperança. Desde a sua eleição em 2008, perdeu a queda de braço com o Congresso e hoje não tem dificuldades em assumir que não deu conta de construir um novo conceito de liberdade, este que permite que as pessoas sejam... livres. Não fechou Guantánamo, não deixou o Iraque, não retirou o apoio a Israel contra a Palestina e hoje é protagonista de um dos maiores escândalos de espionagem pós-Guerra Fria, além de reivindicar o direito de intervir sobre um mundo árabe em caos.
Me lembro perfeitamente daquele 11 de setembro. O medo que senti era completamente diferente dos que normalmente me atormentavam como garoto: o valentão da escola, o chinelo da mãe ou os sapos que apareciam no quintal. Todos eles podiam ser enfrentados com recursos simples de proteção. Mas nem o diretor, nem a vó, nem o estilingue guardado no baú afastam o medo de aviões que podem a qualquer momento atingir um alvo tão comum como prédios comerciais de uma grande cidade.
O medo que senti não foi isolado. Todo mundo sentiu. E assim como não encontrei ninguém suficientemente capaz de me proteger contra ele, todo o Ocidente não encontrou. É neste momento que a liberdade está autorizada a descansar enquanto a capa defensora do Estado anuncia que os aeroportos estão fechados, você será revistado, retirado do show de sua cantora favorita, e ninguém mais se mexe porque uma caixa de sapatos em frente à Assembleia de Deus pode guardar uma bomba.
Neste caso, tudo bem não ser feliz. E muito menos livre. Nos entregamos à segurança de tal forma que a mesma liberdade que tanto desejamos se tornou a principal inimiga da felicidade que hoje, mais do que nunca, afasta seus dois elementos fundamentais constitutivos com a mesma naturalidade com que uma invasão é chamada de guerra.
Se Bauman está certo, estamos tão seguros quanto livres.
Abraços,
Murilo
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