o selvagem e o inocente no progresso da civilização
A
contar pelo famoso erro de Colombo na chegada às ilhas Guanaani - quando pensou ter chegado às Índias através da revolucionária pressuposição de que o mundo era redondo e, portanto, poderia encontrá-las navegando em direção constante a Oeste -, a relação da
Europa com a América muito tem a revelar sobre sua já milenar relação com o
Oriente. A partir de 1492, a noção de um império do diabo demonstra-se cada vez
maior para Europa. Se até então o Maligno estava refugiado nas Índias desde a
propagação do cristianismo no Velho Continente, a chegada dos espanhóis ao Novo
Mundo definiu a América como verdadeiro palco do seu reinado absoluto.
Nas
palavras de Edmundo O’Gorman, o verdadeiro nome da América deveria ser “Nova
Europa”. Isso porque todo o entendimento a respeito do Novo Mundo esteve
pautado num exercício constante de leituras sobre o então desconhecido território
a partir de uma prática já exaustivamente conhecida do etnocentrismo europeu.
Neste sentido, “a invenção da América” esteve muito mais ligada ao
preenchimento de antigos dogmas cristãos do que a qualquer prática empirista.
Longe
do contato entre iguais, o encontro entre Velho e Novo mundo esteve baseado no
rechaço ao outro nativo, entendido por Colombo como categoria intermediária entre
o homem e os animais. De acordo com Beatriz Pastor, havia nos europeus, antes
de tudo, uma estratégia comercial de desumanização dos indígenas, comumente
descritos como pobres, desnudos e desarmados.
Esse
processo de “ficcionalização” esteve acompanhado, é claro, da ideia constante
de demonização da população indígena, encerrada no universo bipolar da lógica
cristã. Diante da luta radical de eliminação da idolatria, mesmo o uso de
termos extraídos de idiomas indígenas ou simplesmente sua tradução eram evitados pelos
europeus diante do "alto investimento do demônio" nelas.
Na
língua, nas práticas, o fato é que compreensão alguma da Europa sobre a América
repousou de outro modo senão na obcecada luta pelo fim da idolatria. Vice-rei
de 1569 a 1581 no Peru, Francisco de Toledo redescobriu, sistematizou e
reagrupou os argumentos teológicos sobre a prática como justificativa
inequívoca da ação espanhola diante do “pecado contra a natureza humana”,
responsável pela produção de barbáries indissociavelmente ligadas à idolatria,
como a antropofagia, sacrifícios humanos, sodomia e bestialidade.
Para
a Espanha, não restava outro caminho a não ser aquele imaginado por Aristóteles
quando sentenciou à escravidão aqueles que naturalmente estão predispostos a
obedecer aos outros. Consagradas ao diabo e não às divindades locais – pois a
compreensão europeia não poderia interpretar de outra forma -, as oferendas
incas, assim como outros desvios, justificam a soberania do rei ibérico, que
passou a recebê-las.
Diante
da concepção missionária do cristianismo em terras tomadas pelo mal, em pleno
limiar do século XIX, François-René de Chateaubriand destaca que
Sin
el cristianismo el naufragio de la sociedad y de las Luces habría sido total.
[...] El cristianismo salvó a la sociedad de una destrucción total al convertir
a los bárbaros y al recoger los despojos de la civilización de las artes, del
mismo modo como habría salvado al mundo romano de su propria corrupción.
Como
destaca Hurbon, pôr fim às superstições nativas significa pragmaticamente para
o cristianismo o fim do infanticídio, da ausência de lei matrimonial, da
anarquia e da ignorância. Ainda que distantes da superioridade europeia, os
“cristãos selvagens” seriam pelo menos desbarbarizados por uma dose de
civilização ocidental.
Antes
de qualquer intervenção, no entanto, a imagem europeia do índio americano
consiste na paisagem virgem de uma natureza selvagem, corrompida sobretudo
pelas “imperfeições” do politeísmo:
El
politeísmo, religión de todas maneras imperfecta, podia pues convenirle a esta
estado imperfecto de la sociedad, puesto que cada amo era uma espécie de
magistrado absoluto cuyo terrible despotismo sujetaba al esclavo em su
obligación, y remplazaba com cadenas la carência de fuerza morla religiosa: el
paganismo, desprovisto de suficiente excelencia para hacer virtuoso al pobre,
se veia obligado a abandonarlo como um malhechor.
No
século XVI, não faltam registros do náufrago Hans Staden, aprisionado em terras
tupinambás e testemunha ocular de uma realidade pouco conhecida, mas há muito
imaginada por uma projeção enraizada por séculos de “experiência” europeia em
terras orientais. Com efeito, pode-se dizer que a compreensão incipiente do
Velho Continente sobre a América esteve baseada pela imagem criada sobre o
Oriente. Desta forma, Staden descreve os índios como selvagens, traiçoeiros,
perigosos e briguentos:
[...] Depois começaram a brigar
por minha causa; um deles dizia ter sido o primeiro a me achar, o outro, que
tinha me capturado. Enquanto isso, os outros batiam em mim com os arcos, e
finalmente dois deles me levantaram do chão, onde eu estava estendido
completamente nu; um deles me segurou por um braço, o segundo pelo outro,
alguns à minha frente, outros atrás de mim, e assim caminharam rapidamente
comigo pela floresta em direção do mar, onde estavam suas canoas.
Alguns
meses depois do edito de Filipe III, que em 1609 expulsava os mouros da
Espanha, começava no Peru a grande campanha pela brutal eliminação da idolatria
nas terras do “Novo Oriente”. De um lado ou de outro do Atlântico, o combate
aos “traidores da Igreja” se desdobrou em tantas frentes quanto possível fosse
no momento em que a Inquisição mais se tornou atuante. Não havia tempo para
permitir-se que a idolatria tomasse conta da América como tomou nos antigos
domínios europeus.
Às vésperas do 19 de abril, jorram veiculações sobre a condição do índio. Não raro - aliás, bem frequentemente -, é relacionado às origens duma natureza pura, tocada pela malícia do branco. A começar pelo fato de que "cultura indígena" diz tanto ao mesmo tempo em que não diz nada - afinal a pluralidade étnica indígena não permitiria a formação de uma cartilha formal do que significa ser índio, como é servida sobretudo pelas escolas -, aqueles que se opõem à ideia de índios selvagens ou vagabundos levantam, sem saber, a mesma bandeira que combatem.
De um lado ou de outro, a verdade é que todo exercício de compreensão sobre o índio americano concentrou esforços na famigerada ideia de natureza. No Dia Nacional do Índio, é o índio quem tem menos a comemorar. Não pela ausência de importância da data ou qualquer coisa nesse sentido, mas sobretudo pela incansável dicotomia que compõe sua imagem, em pleno século XXI, mais de 500 anos depois dos primeiros contatos estabelecidos pelo eurocêntrico (e ruim de geografia) Colombo. Ainda hoje, a ideia de índio flutua entre dois extremos que no fundo pertencem à mesma moeda de um jogo criado nos primeiros anos de colonização.
Do índio "selvagem", "briguento", ao índio "inocente", a régua é a ignorância. A primeira, rodeada por séculos de atribuição animalesca aos índios, entendidos como parte duma categoria intermediária e não completamente humana; e a segunda, cercada por uma pitada de controle travestida de proteção. Celebra-se o fato de que a data foi criada por Getúlio Vargas, curiosamente no mesmo Estado Novo que, através da "Grande Marcha Para o Oeste" - como os norte-americanos -, pisoteou como nunca as terras dos Guarani Kaiowás na região do Mato Grosso.
Cada vez mais confinados por terras do Governo Federal, foram reduzidos à condição de coisa no período militar e hoje, mesmo depois da Constituição de 1988, são vistos como entrave para o avanço do progresso - os "chatos do Belo Monte", como disse José de Abreu. Encurralados, perseguidos por fazendeiros, hoje o índice de homicídios na reserva de Dourados é de 145 para cada 100 mil habitantes, quase o dobro do Iraque, e 495% maior que a média brasileira. A cada 6 dias um jovem Guarani Kaiowá tira a própria vida.
"Selvagem" ou "inocente", o que a compreensão "civilizada" do índio fez não foi outra coisa senão reduzi-lo à condição de coisa. E como coisa, a violência ganha entornos de mero efeito-colateral.
Abraços,
Murilo.
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