Uma discussão social do "fenômeno Herbalife"
Confesso que não conhecia
Era tomado por preconceitos
Um amigo me apresentou
Minha vida mudou
Ainda que a ausência de aspas denuncie, a verdade é que as quatro sentenças acima bem poderiam se encaixar em parte substancial de qualquer cerimônia de apresentação da hoje megacorporação Herbalife, uma empresa de alimentos que, substituindo até duas refeições por dia, promete emagrecimento rápido e muito mais do que isso: algo que nos viciamos em chamar de "estilo" ou "filosofia de vida".
Parte talvez da crise moral contemporânea, a busca do homem por um sentido no Universo e na vida em si tem gerado um verdadeiro show de horrores diante desta necessidade convencional de alicerces referenciais de comportamento. Como não sabemos fazer outra coisa senão comprar, o consumo - ou melhor, o estímulo ao consumo - tem se adaptado a estas tendências de maneira avassaladora e o aparelho da compra hoje significa, ao fim e ao cabo, um mecanismo concreto de inscrição social.
Comprar um tênis Adidas, por exemplo, significa, além de adquirir simplesmente um sapato, inscrever-se numa categoria social específica que por algum motivo alista o sujeito consumidor na categoria própria de consumidores deste produto e automaticamente o aparta da categoria de não-consumidores dele.
É mais ou menos a lógica da Herbalife. "Aqui é muito mais do que um lugar para se tomar o shake. É um espaço de amizade", anunciou um dos fundadores do mais novo "Espaço Vida Saudável". Explico: através do mecanismo de consumo, o sujeito consumidor inscreve-se num novo universo. O shake é mais do que um concentrado de vitaminas misturado ao leite com gelo que estimula o metabolismo; é uma chave de ingresso para o interior deste "estilo de vida" pautado na busca obcecada pela felicidade contemporânea.
No Réveillon, tive acesso à "Ditadura da Felicidade", brilhante contribuição de Rita de Cássia de Araújo Almeida a respeito desta doentia negação social à tristeza. Há um inconsciente coletivo de pressão sobre o indivíduo, que de uma forma ou de outra o torna sujeitado à lógica da felicidade insana - esta que repudia a qualquer custo a frustração, a tristeza, até mesmo o luto, e faz com que simples desilusões amorosas lotem consultórios psicológicos.
Há uma avalanche de felicidade: duzentos canais na TV à cabo, trezentos sabores de sorvete, novecentos pares de sapato, cinquenta tons de cinza. Mais do que isso, a felicidade também se tornou subordinada a questões médicas: academia pela manhã, cochilo depois do almoço, alimentação balanceada, sono calculado, tudo em doses cavalares para o que se convencionou chamar de "qualidade de vida".
E é isso que promete o tal shake: qualidade da vida. O "estilo de vida" Herbalife jura disposição para a rotina diária. Quer dizer, você consome e fica disposto. Não fica disposto porque tem um objetivo, mas tem um objetivo porque fica disposto. Lembro agora o ultra-potencializado Dostoiévski quando anunciou que "o segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo de viver".
Não é por acaso que o - mais uma vez - "estilo de vida" Herbalife esteja ancorado nos maiores espetáculos americanos de motivação. Nos coquetéis de inauguração, depoimentos, testemunhos, reza, aplausos, fotos que circulam como evidência do homem comum que era gordo e que hoje fala com propriedade; enfim, um sem-número de elementos persuasivos pautados na mesma lógica que compõe qualquer um destes programas neo-pentecostais da madrugada na TV. Alguém que fala diretamente para você e, por algum motivo, por você. Um verdadeiro show de terapia motivacional encabeçada pelo fundador, Mark Hughes. Confira aqui a o bizarro manual de auto-ajuda intitulado "Carta aos líderes" para entender melhor - ou confundir mais ainda. Além de tudo, bebendo o shake, veja bem, você será um vencedor!
Aliás tem sido esta a grande sacada da empresa. Não se trata de puro merchandising, exposição barata da marca e inundação de prateleiras no mercado - só não me perguntem como Beckham e Messi foram parar nessa. A chamada "venda direta" atrai também porque usa a medíocre máscara do bem-estar e desta maldita ideia de qualidade de vida testemunhal. De acordo com essa lógica estratégica, o fornecedor te parece qualquer coisa menos um empreendedor, alguém que vai lucrar com isso. Como perdeu peso e ficou mais feliz e disposto, ele se metamorfiza no seu espelho ideal imediato - e não te parece alguém que vai efetivamente ganhar dinheiro.
O negócio funciona como uma rede. Um que vende para o outro, que vende para outro, e outro... formando assim "laços", como dizem os vendedores. Como "vender" parece mesquinho, os adeptos preferem toda esta teorização que caminha para o sentido de "transferir uma experiência de vida saudável". Por isso os "espaços" não são "lojas", afinal não podem parecer um local de venda e lucros - ainda que no fim das contas se transformem nisto mesmo.
Se faz efeito, se emagrece, se cria disposição ou não, isso aqui não importa. O fato é que o "estilo de vida" que tanto buscam hoje se transformou num negócio tão rentável quanto aquele gorduroso McDonald's de carne processada. Além disso, promete a sua inscrição numa vida mais saudável, disposta e, é claro, muito mais feliz.
No coquetel do "espaço de amizade", perguntei se era permitida aquela cervejinha gelada para prosear. Não deixaram, mas fui agraciado com uma sopa de quatro queijos no final.
Abraços,
Murilo.
Tenho pra mim que posso ter uma vida saudável indo à feiras e quitandas, andando a pé e praticando alguma atividade qualquer, gastando nem metade do que gastaria com Herbalife. Além disso, das pessoas que conheço que consomem dessa marca, a maioria passa o dia todo com roupa de ginástica e está mais interessado em ficar sarado do que ser saudável.
ResponderExcluirAgora, qualquer "estilo de vida" é vendido. Os símbolos do consumismo não são mais fast-foods, jeans, carros, etc - qualquer coisa pode ser um. Em São Paulo, estive numa loja que vende artigos e vestuário para pessoas naturebas, que "tentam viver com mais simplicidade e menos bens materiais", etc etc - só que qualquer chinelinho de pneu reciclado custava 80, 90 reais, qualquer camiseta 75, tudo muito caro - loja para pessoas que pagam caro para viver de maneira "simples".
Enfim, só tenho que concordar com o que foi dito acima. O texto está ótimo, e o Ditadura da Felicidade, também, muito bom! Massa ver gente que passa adiante o que lê de interessante.
Tudo que é oferecido como bandeira acaba vindo numa bandeja. E bem da verdade é que vale tudo pra sentir-se parte de alguma coisa. Aí, é claro, entram os visionários empreendedores que te vendem algo como um ingresso pra isso.
ExcluirE realmente o texto da Rita é ótimo! Podíamos ser todos um pouco menos felizes e saudáveis.